Crónicas da Infâmia
Estas imagens são tão chocantes que não seriam necessárias mais palavras para as legendar. Uma criança com medo de uma guerra que descobriu da maneira mais violenta: os bombardeios aéreos. Não sei como se apazigua o coração de uma criança nesta situação. Não sei como alguém pode provocar tal sofrimento. Não sei como existem ambições desmedidas que levam à destruição indiscriminada do ser humano. Aquelas bombas trazem a mais horrenda mensagem de um vil e mais horrendo ditador: bombardear para ocupar. Matar para reinar.
As crianças não a entendem. Apenas descobrem o medo. Um medo sufocante que não acaba. Um medo que nasce e vem de dentro . Um medo que nem os gritos ou o choro são capazes de estancar. Dilacera e esmurra o coração.
E a história repete-se . A sede de totalitarismo de que fala Arendt é inesgotável. Há sempre um déspota sequioso.
Pude constatar esta verdade. O sofrimento que estes actos abomináveis da guerra causam nas crianças .
A parceira que mais
nos impressionou foi uma refugiada húngara. Teria uns seis ou sete anos. Tinha
sido acolhida por uma família amiga dos meus pais. Nos primeiros anos , falava
mal o nosso idioma, passando com o decorrer do tempo a
dominá-lo com brilhante segurança e correcta articulação.
Não recordo, com
total certeza , o seu nome, mas creio
ser Judit. Pois a Judit tinha uma estatura muito mais volumosa que a nossa.
Quase nos dominava em tamanho e peso. Era , porém, uma menina doce e afável que
participava em todas as brincadeiras que eram muitas. (...)
A Judit entrava em tudo, com elegância e gentileza. O que mais me confundia nesta menina era o
pavor que a acometia, quando, muito raramente, nos sobrevoava um avião e se
ouvia o ruído do motor. Atirava-se para o chão , tapava os ouvidos, gemia e
agitava-se como estivesse a ser vítima de
uma convulsão. Atentos, os familiares adoptivos vinham , de imediato,
com uma manta em que a enrolavam e levavam-na para o interior da barraca. À
medida que fui crescendo, fui entendendo que tinha havido uma nefasta guerra que marcara profundamente aquela menina. Os aviões, que despejaram bombas sobre
o seu país, vinham em som e ruído até ali, sempre que passava qualquer um.
Naquele tempo, não havia psicólogos e , por tal, não se atribuía apoio psicológico como hoje tão apraz fazer. As sequelas eram tratadas dentro de casa. Com carinho e muito afecto familiar. Creio que muitas delas ficaram para sempre e que a Judit, esteja onde estiver, ainda convive com elas.
Portimão, 5 de Março de 2022Maria José Vieira de Sousa
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