A
FUGA À REALIDADE
por Eugénio Lisboa
The
whole problema with the world is that fools and
fanatics are so certain of
themselves and wiser
people so full of doubts.
Bertrand Russell
“Quando ainda vivia em
Moçambique, tive um amigo, agora já falecido, que era um conhecido jornalista,
poeta, contista, cronista, com um razoável talento e bastante leitura. Embora
não enfeudado a nenhum partido, “torcia”, como grande parte da juventude,
naquele tempo, para o lado da esquerda dura. Um dia, em conversa amena,
falei-lhe do escritor inglês Aldous Huxley, que eu lia desde a minha
adolescência e de quem admirava a inteligência acutilante, alimentada por uma
enorme erudição. Os seus romances Antic
Hay (1923), Point Counter Point (1928),
Brave New World (1932), Eyeless in Gaza (1936), After Many a Summer (1939), os seus
admiráveis contos Two or Three Graces
(1926) e os seus provocantes ensaios Proper
Studies (1927), Ends and Means
(1937) e The Human Situation (1978)
deixaram marca profunda, na sua época e ainda hoje são altamente dignos de
serem revisitados. Nove vezes candidato ao Prémio Nobel, a egrégia Academia
Sueca nunca se decidiu a dar-lhe o galardão, talvez por razões que têm muito
que ver com a história que comecei a contar. Esse meu amigo dos tempos de
Lourenço Marques, ao mencionar-lhe o nome de Huxley, teve uma reacção muito
particular: fez um sorriso, muito contraído, quase doloroso e, a muito custo,
lá disse de sua justiça: “Prefiro não ler esse escritor. É demasiado
inteligente e por isso, perigoso.” Nunca mais esqueci esta resposta, que ouvi
depois na boca de muitos outros, igualmente inclinados para a mesma ideologia,
pródiga em oferecer certezas confortáveis. A inteligência, por outro lado,
desassossegava, oferecia só hipóteses de trabalho, sempre efémeras e
substituíveis por outras hipóteses menos
erradas. Mas os ideólogos não costumam gostar de pensar. Foi precisamente
Huxley quem disse que pensar é a excepção à regra de não pensar. E Russell
notou, com inquietante justeza, que a maioria das pessoas preferiria morrer a
pensar e, de facto, faz isso mesmo. Esta rejeição muito generalizada do acto de
pensar explica a prosperidade de tantas religiões e ideologias, que são outras
tantas religiões. Só os destemidos pensam e os destemidos são uma minoria da
humanidade. Uma ideologia forte oferece certezas fortes e nada é um nicho tão
acolhedor como uma certeza forte. O problema é que o refúgio em certezas fortes
é sempre uma fuga à realidade da incerteza e da dúvida, mesmo que sejam estas
que fazem andar para a frente o conhecimento humano.
O hábito de fugir à
realidade torna-se particularmente perigoso em chefes políticos como Hitler,
Estaline ou Putine, cuja alienação pode tornar-se a causa de grandes
catástrofes. Nunca esqueço os oficiais alemães que chefiavam dantescos campos
de extermínio, mas, à noite, eram carinhosos maridos e pais de família e
ouviam, com deleite, a mais refinada música clássica. As cartas de Himmler à
mulher são cartas de um marido modelarmente carinhoso. Estes homens
encontravam, na noite doméstica, uma fuga à horrenda realidade do dia. Putine,
ex-funcionário superior dessa fábrica de assassinatos sem julgamento que foi a
KGB, deve ter tido, como o Mr. Kutz da novela de Conrad, Heart of Darkness- que Coppola transportou para o cinema,
colocando-a no Vietnam – que refugiar-se fora da realidade, para sobreviver.
Esse “fora da realidade” é onde ele continua a residir, para grande risco de
ucranianos, de russos e de europeus em geral.
Viver com certezas
fortes é, repito, um dos maiores perigos para a continuação da vida na terra.
Deixo aqui, para terminar esta pérola de saúde mental: “Ensinar como viver sem
certezas e, contudo, sem nos deixarmos paralisar por hesitações, é talvez o
essencial que a filosofia da nossa época pode fazer pelos que a estudam.”
(Bertrand Russell)”
Eugénio
Lisboa, 04.03.2022
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