Ana de Castro Osório e Carolina Beatriz Ângelo junto ao local da eleição de 28 de maio de 1911, “Ilustração Portuguesa”, em 5 de junho de 1911. Hemeroteca Digital. |
O longo texto que se transcreve das actas parlamentares deste nosso país representa o longo caminho que a conquista do direito de sufrágio feminino percorreu.
Em Portugal, o direito ao voto da mulher ficou definitivamente estabelecido após a revolução de 25 de Abril de 1974. Muitas de nós, mulheres, nascemos e confrontámo-nos sem esse direito.
Creio que este texto vos agradará e ajudará a medir quão grande foi o preconceito masculino que grassou, ao longo do tempo, entre os altos dignitários do Parlamento.
A mulher não se mede em género . O seu valor advém da sua essência como é próprio de qualquer ser humano.
Neste momento, há muitas mulheres em diáspora forçada por uma guerra que apenas um só homem decretou. Que o fervor de todos nós, seres humanos, as ajudem .
1. Predicados para ser eleitora
"A reivindicação do direito de sufrágio feminino é anterior à instauração da República a 5 de Outubro de 1910, mas, nos anos que se seguiram, foi objecto de inflamados debates parlamentares.
À distância de mais de 100 anos, há questões então debatidas e argumentos apresentados que permanecem atuais, contudo, no que toca ao direito ao voto das mulheres, não conseguimos deixar de olhar com estranheza para os argumentos exprimidos por aqueles que se lhe opunham, invocando muitas vezes a proteção da própria mulher e da família, mas também por aqueles que, embora de forma restrita, o apoiavam.
Ana de Castro Osório e Carolina Beatriz Ângelo, os nomes mais conhecidos entre aquelas que defendiam que apenas as mulheres com estudos e que trabalhavam pudessem votar, divergiam das posições defendidas por outras ativistas, como Maria Veleda, que consideravam que apenas se deveria aceitar o direito de voto se este não tivesse restrições. Se a questão do sufrágio feminino não era pacífica no seio das câmaras parlamentares em que foi debatida, também não o era nas organizações de mulheres então existentes [1], que, estando de acordo quanto ao direito de voto, discordavam quanto à sua abrangência.
Atas da constituição da mesa eleitoral e da eleição de 1911 da freguesia de S. Jorge de Arroios. Arquivo Histórico Parlamentar. |
2. Mulher feia a valer de cara é feia em inteligência
Esta questão antecedeu e prosseguiu após a publicação da primeira lei eleitoral da República, “Lei eleitoral para servir na eleição de deputados à Assembleia Constituinte”, publicada a 14 de março de 1911, e alterada por decreto de 5 de abril de 1911 [2]. A lei determinava que eram eleitores todos os portugueses maiores de 21 anos, residentes em território nacional, compreendidos em qualquer das seguintes categorias: os que soubessem ler e escrever e os que fossem chefes de família.
Apesar de não consagrar o direito de voto das mulheres, não o excluía ao considerar eleitores os chefes de família, considerando-se como tal aqueles que há mais de um ano vivessem em comum com qualquer ascendente ou descendente, tio, irmão ou sobrinho, ou com a sua mulher e provessem aos seus encargos. A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, depois de ponderar esta questão, decidiu que as mulheres que se encontrassem nesta circunstância deveriam requerer a sua inscrição nos cadernos eleitorais.
Carolina Beatriz Ângelo, viúva e chefe de família - tinha uma filha a seu cargo - requereu a sua inscrição, que não foi autorizada. Recorreu então para os tribunais, tendo a pretensão sido atendida, porque a reclamante tinha todos os predicados para ser eleitora [3], pelo que teve direito a inscrever-se no recenseamento. No dia 28 de maio de 1911, a eleitora n.º 2513 votou e recebeu uma salva de palmas dos presentes. Em 1911, a Finlândia era o único país europeu que reconhecia o direito de voto às mulheres, pelo que a notícia ultrapassou fronteiras e, para além de cartas recebidas pela própria e pela Associação de Propaganda Feminista, jornalistas estrangeiros vieram a Portugal para entrevistar a primeira eleitora portuguesa.Ignoravam, porém, que decorreriam 20 anos antes que as mulheres portuguesas pudessem exercer, ainda que restritamente, o direito de voto.
A arquitetura do poder legislativo na 1.ª República era complexa, competindo ao Congresso da República, que era constituído pela Câmara dos Deputados e pelo Senado da República. Estas câmaras funcionaram desde 26 de agosto de 1911, logo após a aprovação da Constituição, elaborada pela Assembleia Nacional Constituinte, que funcionou entre 15 de junho de 1911 e 25 de agosto de 1911.
De acordo com a Constituição - artigo 84.º parágrafo 1- os primeiros Senadores – 71 - foram eleitos de entre os Deputados da Assembleia Nacional Constituinte, passando os restantes membros a formar a Câmara dos Deputados.
A questão do sufrágio feminino foi abordada na Assembleia Nacional Constituinte, não tendo, contudo, sido tomada qualquer deliberação, considerando-se que não era matéria constitucional. A 27 de julho de 1911, na qualidade de Ministro dos Negócios Estrangeiros, Bernardino Machado, intervém sobre este assunto:
“Mas queria eu dizer, ainda agora, que julguei haver interpretado ontem o sentimento da Assembleia, quando foi eliminado o artigo do projeto da Constituição, relativo aos direitos civis e políticos da mulher. Pelo menos, desejo manifestar, positivamente, qual o sentido em que dei o meu voto. Eu creio bem, Sr. Presidente, que a Assembleia Constituinte não quis de maneira alguma, eliminando aquele artigo, tirar os direitos civis e políticos à mulher.
É minha opinião, expressa pelo meu voto – e vejo agora que o é de toda a Camara - que tal assunto não é constitucional, e deve ficar para ser tratado em diploma especial pelas legislaturas ordinárias. Portanto, nada está absolutamente prejudicado na votação feita, e nada dela se pode concluir que se oponha aos direitos civis e políticos da mulher.
Seria mesmo extraordinário que a República, não só para o homem, mas também para a mulher, e, ainda mais, para a mulher que tem sido no nosso país muito esquecida e muito infeliz, lhes recusasse os seus direitos.”
Poucos dias antes, a 24 de julho, tinha dado entrada e sido remetida à comissão da Constituição uma petição da Associação de Propaganda Feminista, pedindo que fosse concedido o sufrágio feminino.
Depois da Constituição aprovada, é sobretudo no Senado que é reiteradamente debatida a questão do sufrágio feminino, havendo os que eram favoráveis ao direito de sufrágio das mulheres, trabalhadoras e alfabetizadas, como o Senador Faustino da Fonseca que, a 20 de junho de 1912, defendeu:
Com relação à consignação do direito de sufrágio à mulher, é preciso atender a que a propaganda republicana foi largamente acompanhada pelas mulheres que, por isso ,conquistaram o direito de colaborar com
Deputados e Senadores na legislação do país, e não simplesmente nas corporações administrativas (…). Não há motivo nenhum para recusar à mulher essa regalia. Que importa que noutros países as mulheres não votem? A República não se fez para copiar o que fazem os países estrangeiros. Não quero, decerto, que a mulher analfabeta seja chamada a votar, mas quero que a mulher que tenha um curso superior ou exerça uma profissão liberal, que saiba trabalhar e tenha vida independente, possa exercer o direito de voto.”
Além dos favoráveis, havia também aqueles que, por considerarem que as mulheres eram reféns da Igreja, eram contra a concessão do direito de voto ou o admitiam com restrição às detentoras de curso superior, secundário ou especial, como o Senador Machado de Serpa que antes, a 17 de junho de 1912, disse:
“Entendo, Sr. Presidente, que as mulheres que têm um curso superior, secundário ou especial devem poder votar; as outras não, porque, como V. Exa. sabe, a mulher é ainda hoje o elemento que, pela sua fraqueza, mais se afeiçoa a manejos do clericalismo. A mulher é, em geral, um espírito fraco, que vai ao confessionário, que ouve o seu diretor espiritual e as missões dos jesuítas e padres reacionários. Felizmente que nós estamos sendo livres desta praga, mas nem por isso podemos confiar na presente geração das mulheres ignorantes e fanatizadas.”
Ou o Senador Anselmo Xavier que, a 24 de junho de 1912, intervém no debate sobre este tema, defendendo que:
“Posto que não me oponha a que o voto seja concedido às mulheres ilustradas, concordando mesmo que algumas delas fariam uso dele com mais consciência do que muitos homens; contudo votei contra na comissão para não abrir exceções. E uma outra razão também a isso me levou.
No dia em que este assunto foi discutido na comissão, tinha eu passado pela igreja de S. Mamede, donde vi sair centenas de senhoras que ali tinham ido entreter os seus ócios e ilustrar o espírito na prática do mês de Maria. O voto concedido a mulheres nestas condições, vivendo sob a influência do clericalismo, seria o predomínio dos padres, dos sacristãos, numa palavra, dos reacionários. Em todo o caso, repito, eu não me oponho a que se se conceda o voto às mulheres com certa ilustração, e que por isso mesmo estão menos sujeitas a deixarem-se dominar pelos inimigos da liberdade.”
De forma mais radical, o Senador Pais Gomes, a 2 de julho de 1912, concluirá a intervenção sobre o sistema eleitoral defendendo:
“Esses reacionários [jesuítas] espalhando-se pelas aldeias e vivendo sempre em contacto com a gente do campo, desenvolvia uma ação de que resultava o seguinte: não sendo o povo fanático, o padre, no entanto, sugestionava facilmente as mulheres que, tem fundamente radicado o sentimento religioso.
Nestas condições pergunto: podemos nós garantir à mulher o voto?
E como se há de resolver a dificuldade que resulta deste perigo para a República?
Seja-me permitido dizer que isto é uma utopia; isso é viver na lua!”
Ainda na véspera, a 1 de julho, e demonstrando que o debate sobre esta questão trazia à superfície, com frequência, sérios preconceitos sobre o papel da mulher na sociedade, asseverava o Senador José de Castro, numa longuíssima intervenção:
“Repare V. Exa. no seguinte: enquanto as sufragistas tiverem aquela cara das inglesas, cujas fotografias andam pelos jornais, pode ter a certeza de que não lhes dava o meu voto.
Riso.
O Sr. Artur Costa: — Podem ser feias algumas mulheres e terem inteligência.
O Orador: — Mulher feia a valer de cara é feia em inteligência. Se for extraordinariamente inteligente nem a cara se lhe chega a ver.
E V. Exa. sabe melhor do que eu: a perfeição do corpo dá a perfeição da alma. Já lá vai o tempo em que a psicologia vivia divorciada da fisiologia. Hoje a perfeição intelectual do ser humano é uma resultante da sua perfeição fisiológica. Se os órgãos não forem perfeitos não poderão funcionar com perfeição. A inteligência é uma função do cérebro. Já não estamos no tempo daquela frase: feia de corpo, bonita na alma.”[4]
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