sexta-feira, 11 de março de 2022

A Memória não perdoa

Matadores de borboletas azuis1

por Manoel de Andrade
 
                                       Pai perdoai-os porque não sabem o que fazem.
 
“Diante da morte, e do julgamento mais iníquo da história, o inocente Nazareno perdoa incondicionalmente a seus algozes. Mas quem de nós pode perdoar a cruz imposta a Cristo? Como perdoar o desprezo e o falso julgamento de Caifás e as mãos lavadas de Pilatos? Estes são os legítimos ressentimentos, as razões daqueles cujas bandeiras estampam as cores da justiça e da verdade. São também, entre tantas, nossas razões de poetas, os motivos pelos quais cantamos, nossas licenças literárias, nosso encanto e desencanto, nosso íntimo e angustiante tribunal. Sabem os homens justos e sabemos os poetas que nossas denúncias e testemunhos, nossos líricos veredictos se escorrem, ignorados ou esquecidos, pelos ralos da inconsciência humana. Sabemos que o perdão pessoal é o único passaporte que cruza a fronteira da paz interior e da liberdade do espírito, e por isso a justiça deve ser impessoal e ser entregue aos tribunais inexoráveis da própria vida. Mas ainda não consegui visitar esse precioso documento. Como perdoar a cicuta imposta a Sócrates, os que gargalharam no Coliseu ante os cristãos devorados pelas feras, como perdoar os crimes de Torquemada e a fogueira acesa a João Huss e a Giordano Bruno?
Nunca poderei perdoar uma Hiroshima arrasada, nem Auschwitz e nem Treblinka, e as crianças ardendo em napalm na Saigon bombardeada. A Grande Alma da Índia, abençoando o assassino. Ele perdoou, e você? E o tiro em Luther King? Chico Mendes? Dorothy Stang? Por certo foram perdoados. Mas, na memória de Allende e dos mártires chilenos, não perdoo a Pinochet. Não perdoo tanta dor por Caupolican empalado, Tupac Amaru, numa praça esquartejado e Otto René Castillo, durante três dias queimando.
 
Federico García Lorca…,
já não tinhas mais abrigo,
campo frio, amanhecendo,
caminhavas entre os fuzis….
e naquela hora em Granada fomos crivados contigo.
Morremos com Lord Byron,
pela liberdade da Grécia.
Morremos com Victor Jará,
com Ariel Santibañez
torturados até a morte nas prisões de Santiago.
Javier Heraud, ainda infante,
cinco livros publicados
o poeta guerrilheiro,
 no verde vale do Cuzco,
com vinte e um anos apenas ele caiu emboscado.
Não perdoo, não perdoo,
tantos poetas sangrados,
pelas vidas silenciadas nos horrores dos DOI-CODI,
e os carrascos do Regime, só aqui anistiados.
Não perdoo, não perdoo, os crimes da ditadura,
a MEMÓRIA não perdoa
e a pátria jamais perdoa seus filhos sem sepultura.

 
Consola-me acreditar que, apesar da impunidade dos códigos da Terra e da nossa impotência ante a crueldade humana, há uma instância superior da justiça onde se colhe, obrigatoriamente, os frutos amargos dos atos humanos, semeados livremente, mas sem a noção do dever.”
Manoel de Andrade, in As Palavras no espelho, Escrituras Editora, São Paulo , Brasil, 2018, pp.215, 216, 217
1-Texto postado em 20 de fevereiro de 2010 no blog Palavrastodaspalavras 

5 comentários:

  1. Escrevi este texto em 2010, comentando o belo poema Matadores de borboletas azuis, do poeta paranaense Solivan Brugnara. Naquele ano e apesar da minha indignação ao descrever tantas borboletas abatidas, ainda não haviam os 50 mil civis sitiados, em Aleppo, por Bashar al-Assad e por Putin, aguardando, entre mulheres e crianças, o cruel massacre que chocou o mundo, há dez dias do Natal de 2016, naquela que era ‘A cidade mais bonita e elegante do mundo' E agora, meu Deus, são tantas as borboletas azuis que caem mortas ou agonizam nas belas cidades da Ucrânia!
    A Memória não perdoa, pontuou a editora do blog, titulando minhas letras. E essa é a triste memória que nos traz pesadelos e tantos pressentimentos, perante o atual senhor da guerra e ante os seus crimes contra a humanidade. E eis porque perguntamos: Quem comandou a guerra brutal da Chechênea, em 1999 e comemorou a sua capital totalmente arrasada? Em que tribunal se julgarão os responsáveis pelos seus 25 mil civis massacrados?
    Vinte e dois anos se passaram. E agora comandante? Pelo que palpita o seu coração? Qual é o seu tesouro? É a Ucrânia? Lembre-se das palavras do Cristo: “Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração.” Quantas vítimas cabem ainda em sua consciência?
    Senhor da guerra, respeite ao menos as benditas rotas de fuga! Piedade por esses milhares de corpos exaustos que caminham iluminados pela esperança! Respeito pelos corações que se partem na despedida e na saudade! Compaixão por essa imagem de mãe e de mulher caminhando em busca de um abrigo, com uma mochila nas costas, um filho no colo e as lágrimas nos olhos!
    Manoel de Andrade

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  2. Os matadores de borboletas azuis são a infâmia do tempo. Há sempre um que se alonga na brutalidade do seu poder. Não sei se este matador terá coração ou consciência. A surdez a qualquer apelo revela a completa ausência de compaixão.
    Vinte e dois anos para recrudescer a cega e maléfica ambição. Não há palavras de Cristo que lhe bastem.
    Obrigada, poeta Manoel de Andrade.
    Bem-haja.

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  3. Fiquei arrepiado lendo... Assunto pesado porém necessário. Texto muito bem escrito. Parabéns ao poeta Manoel!

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  4. Reflexão justissima no contexto atual. Desoladora guerra que raviva o medo, o odio e a descrença nos coraçōes, em pleno século XXI. Fruto do egocentrismo e imaturidade espiritual. Que a razão e o bom senso possam prevalecer e por um termo breve ao conflito. Isabela

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  5. Realmente um tema muito difícil e o perdão se torna algo praticamente impossível diante das maldades que trazem tanto sofrimento em nossos corações. Só um poeta como o Manoel para conseguir colocar as palavras certas diante de situações tão dolorosas. Parabéns pelo poema. Abraços Angélica

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