Um
José Craveirinha centenário
Breve testemunho
por Eugénio Lisboa
Breve testemunho
por Eugénio Lisboa
“Assinalar – celebrar – o centenário
de José Craveirinha tem, para mim, um sabor agridoce. Como fomos
contemporâneos, conterrâneos, amigos, assíduos conviventes de um saboroso
convívio e opositores a um mesmo regime, que ambos detestávamos, falar num José
Craveirinha centenário torna-me, a mim, bastante antigo (roubo este “antigo”,
em vez de idoso, ao Rui Knopfli).
José Craveirinha foi, em grande parte
da sua poesia, um poeta da indignação e da luta. Com uma vigorosa e bem
apetrechada eloquência, ele soube encolerizar admiravelmente o seu discurso
poético, fazendo dele uma coisa que muita poesia comprometida não conseguiu
fazer: uma síntese bem fundida de vituperação e arte poética, que lhe dá
singular poder. Não basta estar indignado, para ser um grande poeta da
indignação e da imprecação. Muito menos, de uma comovida mobilização, em grande
estilo. Para isso, é preciso ser poeta, isto é, dominar a linguagem poética e
os recursos da sua retórica. Há grandes poetas indignados, como foi, por
exemplo, Pablo Neruda, que foi também grande poeta, na secção não indignada do
seu lirismo. E há também gente justamente indignada que faz má poesia da
indignação.
O escritor inglês, George Orwell,
pediu emprestado ao seu paradoxal contemporâneo, G. K. Chesterton, uma expressão
rica de significado, referindo-se aos “good bad books” (bons livros maus), ou
seja, livros que, por diversas razões, são importantes e duradouros, embora,
como objectos literários, sejam mais ou menos descartáveis. Um exemplo, entre
muitos que poderia dar, é o do célebre A CABANA DO PAI TOMÁS. Este romance,
sobre a escravatura nos Estados Unidos da América, publicado em 1852, da
autoria da escritora Harriet Beecher Stowe, foi um dos grandes mobilizadores
que levaram à guerra civil que, entre outras coisas, terminou com a
escravatura, naquele país. Foi, portanto, um livro importante, um livro “bom”,
mas ninguém ousaria classificá-lo como uma obra-prima da literatura americana. A
CABANA DO PAI TOMÁS é, pois, aquilo que Chesterton cunhou como um “good bad book”.
Eu preferiria chamar-lhe um “importante mau livro”. Trata-se de livros
despretensiosos, literariamente, mas úteis, ao longo de um período bastante
alargado. Deste tipo de obras, diz Orwell, sucintamente: “a espécie de livros
que não tem pretensões literárias, mas que permanece legível, quando outras
produções mais sérias perecem.”
A este grupo de livros, não pertencem
só livros de combate e indignação política. Orwell cita como exemplos, os livros com o protagonista
Sherlock Holmes ou o ladrão de casaca Raffles. Poderíamos juntar-lhes os livros
de Emílio Salgari, de Júlio Verne ou, na poesia, Castro Alves, bem menor, como
poeta, do que outros grandes nomes da poesia brasileira.
Nomes muito badalados do neorrealismo
português foram “importantes” mas não necessariamente grandes poetas ou
ficcionistas.
Mas o caso que eu hoje gostaria de pôr
em paralelo com José Craveirinha é o do seu homólogo Agostinho Neto. Foram
ambos lutadores pela independência dos seus respectivos países, Moçambique e
Angola. E ambos utilizaram, como arma mobilizadora de luta, a poesia. Mas uma
diferença fundamental os separa: SAGRADA ESPERANÇA, de Neto é um “good bad
book”, ao passo que a poesia de José Craveirinha é um “good good book”.
Craveirinha usa de uma sábia e extremamente eloquente arte poética, para
veicular a indignação que o consome, ao passo que a oficina poética de Neto é
indigente ou mesmo inexistente.
Pode haver, nisto tudo, alguma
inevitável injustiça, mas a injustiça faz parte do nosso mundo. Orwell vai até
ao ponto de dizer que A CABANA DO PAI TOMÁS tem grandes possibilidades de
sobreviver às literariamente aclamadas obras de uma Virginia Woolf ou de um
George Moore. Às vezes, o excesso de excelência pode ser mais mortífero do que
a falta dela, se houver outros factores de apelo. Duvido que alguns excelentes
escritores angolanos do nosso tempo tenham vida garantidamente mais longa do
que Agostinho Neto, o qual, na minha opinião, é, como poeta, uma figura
insignificante.
José Craveirinha apostou, por via do
seu talento, nos dois tabuleiros: o da luta, que é sempre apelativa, e o da
arte poética, o do grande domínio da palavra sonora – talvez bebida em Junqueiro
e Hugo - , o domínio do “som” (parafraseando Valéry), em suma, o de uma oficina
bem apetrechada.
Dito o que, termino este breve
testemunho com esta proposta um tanto subversiva: tudo visto, tendo lido e
relido a poesia deste meu Amigo, creio, hoje, que, de um ponto de vista
propriamente poético, o Craveirinha lírico do seu admirável MARIA, obra de
final de vida (1998), é o que de melhor, mais depurado e mais belo ele nos
deixou."
Eugénio
Lisboa, em 05.03.2023
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