por Eugénio Lisboa
Dostoiewski ou Alexandre Soljenytsine ouJorge Semprun sentem uma alegria profundaao poderem exprimir (…) o horror do que viveramnas grandes prisões siberianas do czar ou de Stalineou em Buchenwald.Claude Roy, Défense de littérature
"Há livros
que nos marcam para a vida. Falam de mundos muito diferentes daquele em que
vivemos mas, estranhamente, falam, sobretudo, de nós e daquilo que nos devora.
Falam até mais profundamente de nós do que outros que, aparentemente, nos
estão, geográfica e linguisticamente, mais próximos. A Rússia de Tolstoi, por
exemplo, é mais a minha casa do que
muito romance escrito cá em casa;
reconheço-me mais e melhor em certos personagens bizarros de Tcheckov, perdidos
e achados na imensidade da estepe russa, do que em tanta ficção artificiosa que
lusos confrades ensaiam perpetrar, com olho e destino premeditado em públicos
“internacionais”. O Levin da Ana Karenina
sou eu, por todos os lados, e também me reconheço, com gratidão, na imensa
ansiedade das três irmãs da admirável peça de Tcheckov. Mas revejo-me pouco ou
nada, na vasta balbúrdia de personagens e de aforismos sem sentido, que abundam
na ficção de Agustina; vivo, todos os dias, com a Senhora de Rênal, na
cidadezinha de Verrières – que conheço como os meus dedos – mas sou alheio a
tanto personagem luso que fabrica problemas, congemina conflitos e habita
lugares que pouco ou nada me dizem. A grande ficção não olha a nacionalidades
nem a latitudes, embora possa estar e deva estar ancorada nelas - ela olha
apenas à sua própria força de adesão ardente à realidade do universo (às várias
realidades do universo). A grande ficção passa o tempo a dizer-nos que aquilo
que acontece dentro dela é também o que acontece dentro de nós. Hemingway, que
nos legou umas dúzias de notabilíssimas
ficções curtas e, pelo menos, duas obras-primas da ficção longa, observou, a
este respeito, o seguinte: “Todos os bons livros são semelhantes, na medida em
que são mais verdadeiros do que se tivessem realmente acontecido e, depois de
os termos acabado de ler, sentimos que tudo aquilo nos aconteceu a nós e, mais
tarde, tudo isso nos pertencerá.” Os grandes livros, por outras palavras,
apropriaram-se, antecipadamente, de nós, para que possamos, ulteriormente,
apropriarmo-nos nós deles. Somos a substância deles e eles são a nossa
substância.
As grandes
narrativas dão-nos tudo, mas dão-nos, acima de tudo, uma imensa felicidade: não à custa de serem
narrativas com conteúdos felizes, mas pelo simples facto de serem grandes
narrativas. Camilo empolga-nos e, mesmo debitando infortúnios e tragédias,
propicia-nos o gosto, o prazer, a felicidade suprema de narrar: de narrar, com eficácia e esbelteza. E é essa felicidade,
mais do que a agonia dos protagonistas da narrativa, que nos contamina. Há, no
Simão e na Teresa, do Amor de Perdição,
um longo percurso de agonia e desespero, mas a agonia deles, como personagens,
é a minha alegria de leitor empolgado pela narrativa do sofrimento deles: é
esse sofrimento que, pela eficácia e grandeza do narrar, alimenta o meu prazer
de leitor. Mas o que acima digo implica claramente que a narrativa fluente não
se limita a curar o leitor, dos infortúnios narrados. A felicidade de narrar
começa por atingir, em primeiro lugar, o próprio narrador de desgraças alheias
ou suas. Isto é, se formos nós os narradores de desgraças nossas, o fenómeno é
idêntico: as narrativas que fabricamos dos nossos desencontros, conflitos e
mazelas podem, pelo simples facto de as consumarmos, como narrativas, ser
portadoras de apaziguamento e felicidade. Observava Montherlant que, escrevendo
sobre os nossos infortúnios, sofremos, não sofrendo. O grande escritor francês
Claude Roy, belo romancista e supremo diarista e ensaísta, formula isto mesmo,
em termos inesquecíveis: “Quer se trate do infortúnio dos outros, quer do
nosso, sabemos muito bem, quando pegamos na caneta para o exprimir, que o
primeiro resultado disso é tornarmo-nos imediatamente menos infelizes. Basta
olhar para um escritor em acto de escrever uma cena absolutamente dilacerante e
atroz, para termos o espectáculo de um homem já apaziguado, reconciliado e
quase sereno. (Talvez não propriamente feliz, mas melhor do que isso). Quanto à
gente do teatro, encenadores, actores, decoradores, maquinistas, electricistas,
tiram a maior satisfação por terem de representar o sofrimento de Édipo, cego,
sangrando dos olhos e da alma, de Lear, esmagado, de Augusto Geai [personagem
de uma peça de Armando Gatti], caceteado e moribundo. Há”, continua Claude Roy,
“no exercício da sua arte, do seu ofício, um lado físico, uma mobilização de
todo o corpo e espírito, que os torna mais contentes
do que o escritor, confinado à sua mesa de trabalho e que se não pode libertar
fisicamente a não ser por pequenas sacudidelas da caneta no papel (…)."
Contei já,
noutros lugares, a história verdadeira do viajante que passou, casualmente, à
porta de casa do grande romancista inglês, Thomas Hardy. Resolveu aproveitar a
oportunidade para, sendo seu antigo admirador, o cumprimentar. Abriu a porta da
residência a mulher do romancista, que, ao ouvir o desejo do viajante, lhe
disse, redondamente, que não ia ser possível facultar-lhe a visita: o marido
encontrava-se, naquele momento, fechado no seu escritório, a escrever um poema
extremamente sombrio e isso estava a dar-lhe tanta satisfação, que, por nada,
iria interrompê-lo. Por outras palavras, a sombra trágica do poema não ofuscava
a alegria de o escrever.
Todas as grandes
criações literárias fizeram esta dádiva de felicidade,
aos seus autores, mesmo que devorados de solidão e desespero. Proust
testemunhou-o com invulgar eloquência e meditou, à sua maneira e com argumentos
próprios, sobre este fenómeno paradoxal, ao longo da fabricação da sua
monumental Recherche. É,
contraditoriamente, curioso que Marcel Proust achasse , um
pouco exagerada, a maciça “alegria” orquestral da música com que Wagner
assaltava e inundava o infortúnio trágico dos seus personagens: “Nele [Wagner],
seja qual for a tristeza do poeta, ela é consolada, ultrapassada (…) pela
alegria do fabricante”, observa o autor da Recherche,
aprovativamente, não obstante fazer reserva do exagero wagneriano. Seja como
for, a obra proustiana, como observa o seu perspicaz comentador Edmond Kinds,
embora “frequentemente pessimista, não é nunca desesperada; ela domina sempre a
decepção que testemunha.” E não resisto a acrescentar estas belas e lúcidas
palavras de Edmond Kinds: “Vimos Marcel Proust apaixonado, acima de tudo, pelo
conhecimento. A sua dor, como os outros dados da sua experiência, será
submetida à hegemonia da inteligência. E essa inteligência, nele, não é um
simples instrumento: ela, que denuncia as ilusões da vida, devém, com a arte,
uma vingança sobre essa vida – ou um perdão. A arte é uma alegria que dá um
sentido à existência; a inteligência serve-se do que a vida lhe dá.” Segundo
Proust, então, pela alquimia da arte, o sofrimento transforma-se em “ideias” e
estas, sendo os sucedâneos daquele sofrimento, “perdem uma parte da sua acção
nociva sobre o nosso coração.” E conclui: “(…) essa mesma transformação
liberta, subitamente, a alegria.”
Resumindo e
empobrecendo: toda a grande arte é sempre, à partida, uma promessa de
felicidade: aquela felicidade que, de outro modo, tanto se nos furta, na vida;
mas que prevalece, insisto, na grande arte, mesmo quando esta se alimenta do
sofrimento. Parafraseando o título célebre da obra fundamental de Proust, a
arte é uma busca da felicidade perdida e, por fim, um reencontro luminoso com
ela."
Eugénio Lisboa, em artigo publicado no JL de 2016.
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