Foi assim
por António Lobo Antunes
"A minha filha mais velha nasceu quando eu andava na guerra,
nas Terras do Fim do Mundo, cerca de seis meses depois de embarcar para lá.
Lembro-me que tínhamos, à entrada do arame farpado, um letreiro que dizia
Lisboa 10 000 km, Moscovo 13 000. Estávamos na fronteira da Zâmbia, a uma
distância imensa de Luanda, vivendo os sobressaltos do primeiro ano de horrores.
Nenhum de nós tinha trinta anos excepto o capitão e os sargentos e tudo aquilo
era um pesadelo. Nisto veio uma mensagem em cifra
(porquê em cifra Santo Deus?)
a anunciar que me nascera uma menina. É difícil descrever o
que senti. Lembro-me que me apeteceu matar os cabrões de Lisboa que me haviam
mandado para ali. Matá-los mesmo, juro, matá-los mesmo. Fui sozinho para a
beira do arame, o mais longe possível dos meus camaradas porque me apetecia
chorar. E aí fiquei que tempos, voltado para a chana numa mistura de
sentimentos que não sei descrever, embrulhado em lágrimas de alegria, desespero
e ódio, repetindo
– Cabrões cabrões cabrões
e depois, à medida que o tempo corria, os abraços apertados
e tristes
(tão apertados e tão tristes)
dos outros rapazes. Sem palavras: de que serviam as
palavras? Andei para ali que tempos na areia, a cambalear como um tonto. Isto
não perdoo. Não perdoarei nunca. Mas continuo a sentir a carne viva da amizade
deles, que sempre foi tão importante para mim. Isto no Chiúme, no sítio pior do
batalhão, era Junho. Até um mês como Junho pode ser tristíssimo. O meu camarada
Eleutério, que sempre que ia para a mata regressava cadavérico, colocou-me a
palma no ombro. E não podem imaginar o que uma palma ajuda, com os falcões por
cima e as folhas das árvores a tremerem, tremerem, quase tanto como eu tremia.
Depois nada, salvo eu sozinho sentado na cama, a olhar a G3 encostada à parede.
O Eleutério olhou para mim e olhou para ela sem dizer nada, claro, para quê falar?
Recordo-me de haver pensado
– E se eu não chego a vê-la?
Como aconteceu ao meu primo Quim Zé, e nisto eis-me outra
vez na Vespa do Quim Zé, sempre com paciência para o miúdo que eu era, a
passear-me em Benfica, agarrado às costas dele, todo vaidoso. Gostava de ti,
primo, eras bom e paciente para mim, não te esqueci nunca, nunca te esquecerei,
fui com os meus pais assistir à chegada do teu caixão, a pensar
– Oxalá a Ana Maria
(a irmã dele de que eu gostava tanto, ainda gosto)
a pensar
– Oxalá a Ana Maria saiba mexer na Vespa.
Demorei quase cinco meses a espreitar o meu bebé ao vir de
licença a Lisboa, onde passei trinta dias quase sempre deitado na cama, mirando
o tecto, a contar os dias que faltavam para regressar àquele inferno, com uma
criança loira, de olhos claros, a dormir no meu quarto. A minha laranjinha,
como eu lhe chamava, a minha laranjinha, eu sempre de olhos cheios de Angola,
tão aflito, tão tenso de raiva. O Quim Zé morreu de um tiro só, pensava-se que
do Pedro Afamado, o Mata-Alferes. Pode ser, pode não ser, o que importa? De
qualquer maneira não foi o Pedro Afamado, foram os tais cabrões de Lisboa que o
mataram, o Pedro Afamado fazia o que lhe mandavam, tal como nós, só que ele
lutava pela sua terra, em relação à qual tinha mais direito do que eu. Pronto,
foi assim. Mas para quê tanta violência, tanta injustiça, tanto sofrimento?
Voltei ao fim de vinte e sete meses daquilo a que o meu camarada e amigo de
coração Ernesto Melo Antunes chamava um erro formidável, um erro de uma maldade
atroz. Meu Deus as lágrimas que apesar de tudo consegui congelar na parte de
trás dos olhos. Lembro-me do capitão
– Matei um homem de costas, doutor, matei um homem de costas
para nós
numa perplexidade e num sofrimento que se palpava. E eu a
ouvi-lo engolindo-me a mim mesmo, porque era eu quem se atravessava na minha
própria garganta. Passaram anos sobre isto tudo e de vez em quando estou lá,
palavra de honra, de vez em quando estou lá. Não era apenas um erro formidável,
Ernesto, era uma estupidez formidável. Porquê, porquê, porquê? E tudo isto no
país mais bonito que visitei, sob estrelas que não conhecia, negros miseráveis
perto dos brancos miseráveis que éramos, miúdos atirados para um espaço que não
nos pertencia com a estação das chuvas a crescer, a crescer.
Agora eis-me aqui em Lisboa a escrever isto. Eis-me aqui em
Lisboa mas nunca saí inteiramente de lá. Já não tenho camuflado, já não tenho
arma, já não tenho cabelo loiro. O que tenho eu então? O que aconteceu à minha
G3, o que me aconteceu a mim? Se contasse isto ao Quim Zé aposto que ele me
respondia
– Senta-te aí atrás na Vespa
e me levava a passear por Benfica até as lágrimas me secarem
todas no interior das pálpebras."
António Lobo Antunes,
em Crónica publicada na VISÃO 1349 de 10
de Janeiro de 2019.
Historia contada com precisão, foi um tempo.
ResponderEliminarPara quê tanto sofrimento! também passamos por isso, abraço do amigo Sérgio Poinhas
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