A poesia tem muitas claves. O Soneto é talvez uma das mais nobres e rigorosas. Escolhemo-lo para celebrar este dia mundial da poesia,
Como introdução/ dissertação, fomos roubar ao poeta Eugénio Lisboa este sucinto e esclarecedor texto.
O
SONETO
por Eugénio Lisboa
“Toda a gente sabe o
que é um soneto: uma estrutura literária com catorze versos de dez sílabas,
distribuídos normalmente – mas não necessariamente – por dois quartetos e dois
tercetos. Há sonetos com versos de doze sílabas, mas são raros. O soneto tem
fama de ser muito difícil de construir, a tal ponto que, apesar de Petrarca e
Camões os terem feito primorosos, Godeau, bispo de Vence, era de opinião que é
impossível fazer um soneto perfeito. Godeau ia mesmo ao ponto de dizer que o
soneto não é deste mundo. A este propósito, o notável crítico de arte francês,
Charles Asselineau, um dos poucos amigos que Baudelaire teve, dizia,
chocarreiramente, que Godeau era crente em Deus, mas ateu em soneto. Antero de
Quental, por exemplo, escreveu belos sonetos, mas como, por confissão própria,
nunca se deu ao trabalho de estudar, a sério, a arte do soneto, alguns dos seus
são um pouco imperfeitos. Dizer isto às viúvas de Antero é altamente perigoso:
corre-se mesmo risco de vida. Mas é tudo por bem.
Não vim, porém, nesta
crónica que se quer curta, falar dos problemas e dificuldades que surgem aos
perpetradores de sonetos. Ora eu sou um desses perpetradores porque, durante
esta guerra russo-ucraniana, tenho andado a fazê-los quase à média de um por
dia, o que significa, se mais não significar, que tenho, pelo menos, alguma
experiência. Queria pois aproveitar esta experiência, não, como disse, para
esmiuçar pormenores de arte poética, mas para responder a esta magna pergunta:
PARA QUE SERVE UM SONETO? Para responder a isto, dada a tal minha grande e
prolongada experiência, estou eu magnificamente equipado: porque os tenho
escrito, nos mais variados estados de espírito e para os mais variados fins. O
soneto serve, por exemplo, para a guerra: tenho-o usado como fisga, para tentar
atingir Putine entre os olhos. O soneto, na guerra, faz imensos estragos ao
inimigo e até mata. Pode servir, em dias de neura, para nos interrogarmos sobre
o sentido (nenhum) da vida e, noutros dias (de euforia), para celebrarmos e
trincarmos, com lascívia, os frutos da terra. Podemos, com ele – e apesar de
termos de o fazer só em catorze versos – recordar os tempos em que fomos
felizes ou, alternativamente, os momentos piores da nossa vida. O soneto dá
para tudo, e sempre em apenas catorze versos. Fazer caber o mundo num envelope
tão pequeno, tem uma graça que só o sonetista consegue apreciar. O soneto dá
para ser irónico, para ser sarcástico, para ser romântico, para ser terra-a
terra, para ser colérico, como Aquiles ou admiravelmente sóbrio e digno como
Heitor. O soneto dá para ser casto e para ser lúbrico. O soneto pode ser
religioso ou ateu. O soneto pode servir para mandarmos recado à namorada ou
para acabar com o namoro. Não há nada debaixo do sol para que o soneto não
sirva. Só há uma coisa para que nunca consegui que ele servisse: para tirar
nódoas. O bispo de Vence tinha razão: não há sonetos perfeitos.”
Eugénio
Lisboa, em 20.06.2022
Eu cantei já, e agora
vou chorando…
Eu cantei já, e agora
vou chorando…
Eu cantei já, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado:
Parece que no canto já passado
Se estavam minhas lágrimas criando.
Cantei; mas se me alguém pergunta, quando?
Não sei; que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado,
Que o passado por ledo estou julgando.
Fizeram-me cantar manhosamente
Contentamentos não, mas confianças:
Cantava, mas já era ao som dos ferros.
De quem me queixarei, se tudo mente?
Porém que culpas ponho às esperanças,
Onde a fortuna injusta é mais qu’os erros?
Luis de Camões, in Sonetos
de Luís de Camões, Livraria Clássica Editora
A um Poeta
Surge et ambula!
Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.
Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares…
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno…
Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções…
Mas de guerra… e são vozes de rebate!
Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!
Antero de Quental, Sonetos Antero de Quental, Edição organizada, prefaciada e anotada por António Sérgio, 4ª Edição. Sá da Costa Editora 1972.
AH, UM SONETO...
Meu coração é um almirante louco
Que abandonou a profissão do mar
E que a vai relembrando pouco a pouco
Em casa a passear a passear...
No movimento (eu mesmo me desloco
Nesta cadeira, só de o imaginar)
O mar abandonado fica em foco
Nos músculos cansados de parar.
Há saudades nas pernas e nos braços.
há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.
Mas — esta é boa! — era do coração
Que eu falava... e onde diabo estou eu
agora
Com almirante em vez de
sensação?...
12-10-1931?
Álvaro
de Campos , in Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução,
transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa,
1993.
Desejos vãos
Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!
Eu queria ser o sol, a luz imensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!
Mas o Mar também chora de tristeza...
As Árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!
E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...
Florbela Espanca, in Sonetos , Porto Editora
Educação Sentimental
Na janela mais alta de Lisboa
és a ave chamada Todavia:
a que posta no céu não se
desvia,
mas que perto do rio já não voa...
Hei-de ensinar-te, devagar (
perdoa!),
a pressa com que Amor se pronuncia
e a conjugares a noite com o dia
quando o corpo do corpo se condoa...
Fecha os olhos, e voa! Mas não
queiras
ao inferno do céu traçar fronteiras
nem ao céu do inferno pôr limites:
voar só vale a pena enquanto for
uma forma de amar além do amor,
furor que todavia não habites...
David Mourão-Ferreira, in "Infinito pessoal
[1959-1962] - Obra Poética", Assírio & Alvim , p 145
Rio de Fogo
Há na minha alma, desde sempre, um fogo
e há , também na minha vista , um rio.
A minha vida é uma forma de jogo , ~
endireitando à morte um desafio.
Há nesse fogo um rio que fascina
e no rio um fogo que devora:
leio no rio a minha ígnea sina,
o destino aceso que em mim demora.
E leio no fogo que vai no rio,
como num livro que me fosse aberto,
o meu andar para junto do frio
que há-de queimar-me em dia certo:
se a água é chama humedecida,
minha imagem será nela esculpida.
Londres, 07.01.1984
Eugénio Lisboa, in A matéria intensa, Editora Peregrinação, Baden/Suíça, p. 62Soneto do reencontro
Na primavera
tu voltaste de mansinho
finda
a tempestade, surgiste na bonança
me conjugando o verbo da esperança
num íntimo
gesto de lírico carinho.
Tu
foste meu fuzil, o meu canto guerreiro
a voz
peregrina acesa no meu peito,
ensina-me a cantar agora de outro jeito
para
entoar amor e paz ao mundo inteiro.
Combatente
e amordaçada em meu destino
silenciados
e por atalhos clandestinos
trinta anos
se passaram, dia-a-dia.
Depois
a liberdade chegou para o meu povo
mas só
agora eu te encontrei de novo
para nunca
mais perder-te... ó poesia.
Curitiba, dezembro de 2002
Manoel de Andrade, in Cantares,
Escrituras Editora, São Paulo, Brasil, p.72
O
Livro dos Amantes
VII
Tu pedes-me a noção de ser concreta
num sorriso num gesto no que abstrai
a minha exactidão em estar repleta
do que mais fica quando de mim vai.
Tu pedes-me uma parcela de certeza
um desmentido do meu ser virtual
livre no resultado de pureza
da soma do meu bem e do meu mal.
Deixa-me assim ficar. E tu comigo
sem tempo na viagem de entender
o que persigo quando te persigo.
Deixa-me assim ficar no que consente
a minha alma no gosto de reter-te
essencial. Onde quer que te invente.
Natália
Correia, in Antologia
Poética- O livro dos Amantes, Organização e prefácio de Fernando Pinto
do Amaral, Publicações Dom Quixote
Que
Encanto é o Teu?
Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.
Que encanto é o teu? Se continua
enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,
um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,
tão quase é coisa ou sucessão que
passa…
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.
Jorge de Sena, in As Evidências, Assírio & Alvim