JOYCE
– 1
por Eugénio Lisboa
"Como quase toda a gente – há excepções! – tenho-me enganado. Mais precisamente, tenho-me deixado enganar. O que nem chega a ser grave dizia alguém que não comete erros também, de uma maneira geral, não comete coisa nenhuma. Estou , como não é evidente, a falar de Joyce. Para ser franco, achei-o sempre um bocado sobre o “fitirioso” ( de phthirus pubis, isto é, “chato”. Uma das maiores estopadas da minha vida foi assistir , num cinema de Londres, em fim de tarde de inverno, à exibição do filme Ulisses, de Joseph Strick, baseado na obra do mesmo nome , de Joyce. Éramos quatro, - eu, mimha mulher, o meu amigo Carlos Adrião Rodrigues e a mulher: fizemos, os quatro, uma das grandes sonecas da nossa vida. O filme, como o tão alardeado livro que lhe esteve na origem , era soberana e ultrajantemente chato ( de phthirus pubis, recorde-se). Mas quando eu era novo, era tímido : quem era eu, para se opor a todos os veneráveis escritores e eruditos que promoviam Joyce como um dos três ou quatro indiscutíveis GRANDES do século XX? ( De SEMPRE!) Como diria o Eça , curvei o espinhaço. Não gostava , mas não me atrevia. Não diria que não nem que sim ( era cauteloso mas não mentiroso): calava-me , com ar hipocritamente respeitoso: Joyce, claro!
"Como quase toda a gente – há excepções! – tenho-me enganado. Mais precisamente, tenho-me deixado enganar. O que nem chega a ser grave dizia alguém que não comete erros também, de uma maneira geral, não comete coisa nenhuma. Estou , como não é evidente, a falar de Joyce. Para ser franco, achei-o sempre um bocado sobre o “fitirioso” ( de phthirus pubis, isto é, “chato”. Uma das maiores estopadas da minha vida foi assistir , num cinema de Londres, em fim de tarde de inverno, à exibição do filme Ulisses, de Joseph Strick, baseado na obra do mesmo nome , de Joyce. Éramos quatro, - eu, mimha mulher, o meu amigo Carlos Adrião Rodrigues e a mulher: fizemos, os quatro, uma das grandes sonecas da nossa vida. O filme, como o tão alardeado livro que lhe esteve na origem , era soberana e ultrajantemente chato ( de phthirus pubis, recorde-se). Mas quando eu era novo, era tímido : quem era eu, para se opor a todos os veneráveis escritores e eruditos que promoviam Joyce como um dos três ou quatro indiscutíveis GRANDES do século XX? ( De SEMPRE!) Como diria o Eça , curvei o espinhaço. Não gostava , mas não me atrevia. Não diria que não nem que sim ( era cauteloso mas não mentiroso): calava-me , com ar hipocritamente respeitoso: Joyce, claro!
Depois, um dia, achei que era melhor
deixar-me de hipocrisias e adoptar o franc
parler tão caro ao meu grande
Sthendal. Pus-me a “ testar” os meus amigos: quando, timidamente,
circunvolutamente, se punham a
entaramelar o que não pensavam de
Joyce, eu interrompia-os de chofre
com um “ Que grande chato!". O
resultado da minha iconoclastia era esplendoroso: o supremo alívio que se
reflectia naqueles rostos macerados! Enfim, alguém se atrevia a dizer o que eles também, muito
secretamente, pensavam! Que fardo tirado de cima dos seus frágeis ombros!
Mas sentia-me só. Não haveria, entre os grandes cognoscenti, quem estivesse de acordo comigo? Até que, há dias, lendo umas deliciosas e sempre provocantes entrevistas de Jorge Luís Borges, dei com algumas passagens que me restituíram a autoestima. Borges começava por insinuar que era a sua grande admiração por Cervantes que lhe obstruía por completo a adesão ao irlandês. Depois, ia mais longe e afirmava: “ Joyce é uma espécie de curiosidade literária, um pouco como Gôngora.” E acrescentava, literato como Gôngora e Quevedo. Talvez Cervantes fosse muito diferente e superior. De resto”, concluía “ a comparação é impossível , porque ele era romancista e Joyce não. O talento deste último, como o de Gôngora, era verbal , mas aplicável a composições breves do que a um romance longo […]. O erro de Joyce foi o de dedicar-se a escrever romances. Deste modo, conseguiu frases esplêndidas, mas não criou personagens”. Isto já era suficientemente forte, em termos de consignar uma boa parte da obra do escritor para o cesto dos papéis, embora, até aqui, Borges preservasse as boas maneiras e não se atrevesse a uma execução sem apelo. Mas, mais adiante, não esteve com meias-medidas e concluiu assim: “ Ulisses e Finnegans Wake [são] autênticos malogros. “ Quanto a este último romance , a minha opinião é mais benigna: não se trata sequer de um romance – não foi isso que empreendeu o escritor – mas de um daqueles saudosos “ hieróglifos comprimidos”, que inundavam as páginas do antigo Alm, insuspeito anaque Bertrand.
Para me sentir mais amparado – Borges é um magnífico amparo, mas a sua verve de “ gamin” pode parecer a alguns , pouco respeitável – fui procurar outras bengalas e elas surgiram em barda: afinal , não estava assim tão só! Hoje fico-me pelo grande dramaturgo George Bernard Shaw, insuspeito porque até é também irlandês: “ Na Irlanda, diz o autor de Pigmalião, “ tentam limpar um gato, esfregando-lhe o nariz na própria imundície. O Sr. Joyce tentou o mesmo tratamento com o ser humano. Espero que prove ter êxito”.
No próximo número de LER, a festa continua: talvez o melhor esteja ainda para vir…"
Eugénio Lisboa, em Ipssima verba, Revista LER , nº 143, Outono de 2016
Mas sentia-me só. Não haveria, entre os grandes cognoscenti, quem estivesse de acordo comigo? Até que, há dias, lendo umas deliciosas e sempre provocantes entrevistas de Jorge Luís Borges, dei com algumas passagens que me restituíram a autoestima. Borges começava por insinuar que era a sua grande admiração por Cervantes que lhe obstruía por completo a adesão ao irlandês. Depois, ia mais longe e afirmava: “ Joyce é uma espécie de curiosidade literária, um pouco como Gôngora.” E acrescentava, literato como Gôngora e Quevedo. Talvez Cervantes fosse muito diferente e superior. De resto”, concluía “ a comparação é impossível , porque ele era romancista e Joyce não. O talento deste último, como o de Gôngora, era verbal , mas aplicável a composições breves do que a um romance longo […]. O erro de Joyce foi o de dedicar-se a escrever romances. Deste modo, conseguiu frases esplêndidas, mas não criou personagens”. Isto já era suficientemente forte, em termos de consignar uma boa parte da obra do escritor para o cesto dos papéis, embora, até aqui, Borges preservasse as boas maneiras e não se atrevesse a uma execução sem apelo. Mas, mais adiante, não esteve com meias-medidas e concluiu assim: “ Ulisses e Finnegans Wake [são] autênticos malogros. “ Quanto a este último romance , a minha opinião é mais benigna: não se trata sequer de um romance – não foi isso que empreendeu o escritor – mas de um daqueles saudosos “ hieróglifos comprimidos”, que inundavam as páginas do antigo Alm, insuspeito anaque Bertrand.
Para me sentir mais amparado – Borges é um magnífico amparo, mas a sua verve de “ gamin” pode parecer a alguns , pouco respeitável – fui procurar outras bengalas e elas surgiram em barda: afinal , não estava assim tão só! Hoje fico-me pelo grande dramaturgo George Bernard Shaw, insuspeito porque até é também irlandês: “ Na Irlanda, diz o autor de Pigmalião, “ tentam limpar um gato, esfregando-lhe o nariz na própria imundície. O Sr. Joyce tentou o mesmo tratamento com o ser humano. Espero que prove ter êxito”.
No próximo número de LER, a festa continua: talvez o melhor esteja ainda para vir…"
Eugénio Lisboa, em Ipssima verba, Revista LER , nº 143, Outono de 2016
Cena do filme Ulisses, de Joseph Strick, baseado no livro de Joyce
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