Por
que escrevem os escritores?
Respostas
perigosamente reveladoras
por Eugénio Lisboa
«É bem verdade que a
indiscrição não está muitas vezes nas perguntas, mas sim nas respostas. Porque
mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo. E, quase tão depressa como
se apanha um mentiroso, apanha-se um pretensioso trapalhão. O meio literário
está cheio de gente desta, que muito polui a atmosfera que todos respiramos.
Candura, coragem, simplicidade e o gosto do “franc parler” é o que menos se vê.
Ler entrevistas feitas a escritores é quase sempre um dever penoso. Quando se
pergunta a escritores de que ambiente precisam para arrancarem com a escrita,
as respostas oscilam frequentemente entre o cómico e o patético. Uns precisam
de sol, outros de chuva, outros, ainda, de nevoeiro. Alguns, que precisam
fervorosamente de chuva, se não chove, usam um regador que faça chuva
artificial. Quando se usava caneta, havia escritor que só funcionava com uma
caneta especial. Alguns só operam se as secretárias em que escrevem estiverem
voltadas a nascente, outros, se estiverem para poente. A grande romancista
americana Willa Cather precisava, para aquecer o motor da escrita, de ler uma
passagem da Bíblia. Stendhal, em vez da Bíblia, usava o Código Civil, para o
mesmo efeito. Hemingway aquecia o motor, aparando meia dúzia de lápis, Virginia
Woolf, só escrevendo de pé e Edgar Poe, não conseguia escrever um poema sem um
gato siamês em cima do ombro. Há para todos os gostos, o que é preciso é ser interessante e sugerir, sibilinamente
(ou acreditar nisso, o que é pior), que o escritor em causa é accionado por
poderes misteriosos. A excepção a esta regra deprimente foi, por acaso, uma
enorme escritora do século XX, a grande Colette, que a essa peculiar pergunta,
respondeu que, para escrever, só necessitava de uma caneta, tinta e papel.
Colette era só uma prodigiosa escritora e não precisava de posar de vestal
oracular. Porém, no melhor pano, cai a nódoa.
Mas o propósito que
aqui me traz é outro: não sondar de que motor de arranque precisa o escritor para
começar a escrever, mas antes a razão por
que escreve. Nas respostas que grandes e menos grandes escritores têm dado
a esta pergunta, também há de tudo. Desde as coisas mais grandiloquentes até às
confissões mais cândidas e nuas. Fernando Pessoa, por exemplo, não fazia a
coisa por menos disto: “Eu escrevo para salvar a alma.” Clarice Lispector
escrevia igualmente por razões egrégias: “”Essa capacidade de me renovar toda à
medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever.” Gabriel Garcia Marques
tinha também altas ambições, embora fossem ambições não propriamente
literárias: “Para que meus amigos me amem mais.” Tratava-se, em suma, não de
amar, mas de ser amado. George Orwell, movido por razões nobres, era contido e
modesto: “Quando me sento para escrever um livro, não digo a mim mesmo: ‘Vou
produzir uma obra de arte’. Escrevo porque existe uma mentira que desejo expor,
um facto para o qual quero chamar a atenção e a minha preocupação principal é
atingir um público.” O grande jornalista, cronista e ficcionista brasileiro,
Fernando Sabino, é a despretensão em pessoa: “Não sei por que escrevo. Eu
nasci, virei homem e vou morrer.” O grande Carlos Drummond de Andrade, tenta,
com modéstia e um uso cauteloso do “talvez”, dizer alguma coisa sobre por que
escreve: “Sou uma pessoa que gosta de escrever, que conseguiu talvez exprimir
algumas de suas inquietações, seus problemas íntimos, que os projectou no papel
(…)”. João Cabral de Melo Neto, o engenheiro, ensaia, com modéstia e exemplar
fuga ao pretensiosamente transcendente, sondar a razão de ser do seu ofício de
grande poeta: “Eu sinto que me falta alguma coisa. Então, escrever é uma
maneira que eu tenho de me completar. Sou como aquele sujeito que não tem perna
e que usa uma perna de pau, uma muleta. A poesia preenche um vazio existencial.
Às vezes eu escrevo porque quero dizer determinada coisa que eu acho que não
foi dita; às vezes porque me interessa que conheçam meu ponto de vista. Às
vezes, escrevo também por prazer.” Manuel Bandeira diz, sucintamente, uma coisa
que também sinto: “Na verdade, faço versos porque não sei fazer música…” Truman
Capote é desavergonhadamente radical: “Sou um estilista: preocupa-me mais onde
colocar uma vírgula do que ganhar o Prémio Nobel.” O grande William Faulkner,
escafandrista de infernos americanos e universais, não está com papas na língua
e, à pergunta “por que escreve” responde curto e limpo: “Para ganhar a
vida.” Mas o melhor de todos é Umberto
Eco, com o seu lavado “Porque gosto.”
Mas não quero terminar
esta breve excursão pelas declaradas motivações desse bicho estranho que é o
escritor, sem aqui traduzir, para vosso entretenimento, esta deliciosa passagem
do prefácio que Robert J.Burdette escreveu para o seu livro THE RISE AND FALL OF THE MUSTACHE AND OTHER
HAWKEYETEMS: “O aparecimento de um novo livro é uma indicação de que um outro
homem descobriu como missão entregar-se ao robusto cumprimento de um dever,
accionado pelo mais nobre dos impulsos que podem incentivar a alma de um homem
à acção. É a mais orgulhosa vanglória da profissão de literato que nunca homem
nenhum publicou um livro por motivos egoístas ou propósitos ignóbeis. Têm-se
publicado livros para consolação dos aflitos, para guia dos que andam ao deus
dará, para alívio dos destituídos, para esperança dos penitentes, para elevar
acima de tristezas e medos as almas sobrecarregadas, para a melhoria geral da
condição humana, para o triunfo do certo sobre o errado, do bem contra o mal,
para a vitória da verdade. Este livro é publicado para eu ganhar dois dólares
por exemplar.”»
Eugénio
Lisboa, em 01.03.2023
Nota
de leitura não obrigatória:
Confesso que me dá bastante jeito escrever, com um gato ao meu lado. Nada de
transcendente: é só uma ajuda. Por outro lado, escrevo para tornar mais claras
um certo número de perguntas. Quanto às respostas, isso é demasiada areia para
o meu camião. Ficam para outros mais atrevidos.
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