O homem sem qualidades
por Robert Musil
“Nesse momento ele desejou ser um homem sem
qualidades. Mas provavelmente em todas as pessoas se passa algo semelhante. No
fundo, poucos sabem, no meio da sua vida, como se tornaram aquilo que são, com os seus prazeres; a sua visão do mundo, a esposa, o carácter, profissão e
realizações, mas têm a sensação de que já não se poderá mudar lá muita coisa.
Até se poderia afirmar que foram traídas, pois não se encontra em lugar algum
uma razão suficientemente forte para tudo ter sido como é; poderia ter sido
diferente; os acontecimentos raramente dependeram delas, em geral dependeram de
uma série de circunstâncias, do capricho, vida, morte de outras pessoas, e
apenas se lançaram sobre elas num momento determinado. Assim, na juventude
ainda jazia à frente delas algo como uma manhã inesgotável, cheia de
possibilidades e de vazio por todos os lados; mas já ao meio-dia aparece de
repente algo que pode pretender ser a vida delas; isso é tão surpreendente como
certo dia, de súbito, vermos uma pessoa com quem nos correspondemos durante
vinte anos sem a conhecer, e a tínhamos imaginado tão diferente. Mas muito mais
estranho ainda é que a maioria das pessoas nem notam isso; adoptam o homem que
apareceu nelas, cuja vida viveram; as suas experiências lhes parecem agora a
expressão das próprias qualidades, e o destino lhes parece ser seu próprio
mérito ou desgraça. Passou-se com elas o que acontece com um papel pega-moscas
e uma mosca: aquilo colou-se nelas, aqui por um pelinho, ali por um movimento,
e aos poucos as envolveu, até que ficam enterradas numa camada grossa que
corresponde só muito de longe à forma original que tiveram um dia. E então só
recordam vagamente sua juventude, quando ainda tinham certa resistência. Essa
outra força puxa e gira, não quer ficar em lugar algum e desencadeia uma
tempestade de desnorteados movimentos de fuga; a ironia da juventude, sua
rebeldia contra o estabelecido, a disposição dos jovens para tudo o que é
heroico, o sacrifício pessoal e o crime, sua fervorosa seriedade e sua
inconstância — tudo isso não significa senão movimentos de fuga. No fundo,
apenas expressam que nada daquilo que o jovem empreende lhe parece necessário e
unívoco, nascido do seu interior, embora o manifestem como se tudo aquilo em
que agora se precipitam fosse absolutamente inadiável e necessário.”
Robert Musil, in O Homem Sem Qualidades. Livro
I, cap. 34, Publicações Dom Quixote, 1978. p. 96.
Sinopse
Prémio Goethe em 1933.
"Pela primeira vez traduzido directamente da língua
alemã por João Barrento.
Uma obra singular e única no panorama da ficção
do século XX, um dos mais importantes livros da literatura mundial. Mais do que
um romance, "O Homem Sem Qualidades" é o maior projecto romanesco,
deliberada e quase necessariamente inconcluso e inconclusivo, da literatura do
século passado.
No momento da morte inesperada de Musil em 15
de Abril de 1942, no exílio de Genebra, "O Homem Sem Qualidades" é
verdadeiramente o “livro por vir”, aquele cuja essência – no seu protagonista
acentrado, no processo da sua génese, no cerne do seu pensamento – é a de um
laboratório de possibilidades que o transformarão na obra aberta por excelência
e na “tarefa criadora [mais] desmedida” da história da literatura moderna.
"O Homem Sem Qualidades" será, durante mais de duas décadas, a obra
em processo de criação e transformação que se autonomiza e se impõe de forma
obsessiva e implacável ao próprio criador, aprendiz de feiticeiro que a
controla cada vez menos à medida que ela se vai transformando numa rede
rizomática de possibilidades de crescimento e de perspectivas de finalização
sempre adiada, que parece querer reflectir o próprio feixe aleatório de
possibilidades que é aquilo a que chamamos “realidade”.
Se a ironia é neste livro, como diz Blanchot,
“um dom poético e um princípio de método” que modula, não apenas a palavra mas
também a própria composição romanesca, na oposição contrapontística permanente
e irresolvida entre “a exactidão e a alma”, a reflexão e os sentimentos, o
indivíduo em busca de si e o mundo dos factos (nas vésperas da Primeira Grande
Guerra), essa mesma ironia haveria de determinar todo o acidentado e
contraditório processo de génese e de publicação deste objecto literário
esquivo que, ao contrario do que frequentemente se tem dito, será mais um
não-romance do que um anti-romance."
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