Agendas
"Recorda que
naquele dia, tinha chegado a casa particularmente cansada. Não sabia porquê,
gratificava-a o que fazia naquela cidade onde não sabia se queria ficar a viver
para sempre. O que era sempre, o que queria dizer sempre senão um levantar de
cercanias próximas, de impedimentos opacos, um esquecer das agendas que nela se
iam criando à medida que tocava uma melodia telefónica, escondida em qualquer
saco.
Nunca estava
sem trabalho. Às vezes era Amu que lhe recebia telefonemas, às vezes mails,
raramente lhe vinham bater à porta e disso ela não gostava, de ser pressionada
por um toque de mão, de ver-se fechada num olhar que não aceitava recusas.
És o irmão
que não tive, dizia-lhe muitas vezes. Eram da mesma idade e partilhavam a casa
que uma amiga lhes tinha confiado ao ir para fora por tempo indeterminado,
largando um trabalho certo na loja de um padrinho, uma rotina segura para
seguir um fio intuitivo, o apelo incerto, um lugar longínquo. Agora, nem ela nem
Amu sabiam do paradeiro da dona da casa e tinham de a deixar envelhecer na
fachada e nas paredes, apenas remendando uma ou outra janela, uma ou outra
telha, um ou outro cano.
Chegou a casa
cansada, adormeceu. Pensou antes de adormecer, embalada a olhar para as vigas
no tecto, que todo o mundo à sua volta, prestes a deslizar para o lado, era um
grande abrigo provisório, a respirar nas suas brechas. Sentia-lhe o ritmo
tranquilo, como um deserto reduzido a uma paisagem interior, como um quadro
recebido como recompensa por ter desertado de uma outra casa, onde se bebia e
jogava e defraudava e a que tinha chamado familiar.
Amu correu a
acordá-la sem bater à porta.
Ofegava.
A minha
prima, ontem à noite. Morta no passeio, ao pé do terminal do autocarro. Não tinha
documentação e os irmãos dela andam a monte. A polícia acha que foi mais um
desses ajustes de contas para salvar a honra da família. Ela tinha feito a
escola superior de educação, dava aulas, fumava, usava saltos altos e roupa
apertada, não punha lenço nem para as reuniões familiares de fim de semana.
Dizia que queria viver como no país, como tu, como eu.
Lembrava-se
dessa primita pálida e escura, tão aplicada no estudo de tantas línguas e que
disse uma vez a brincar que queria estudar para espia.
Lembrava-se
que lhe respondeu: para seres uma verdadeira agente secreta tens de ser mais
romana em Roma.
Em Roma, ou
em Bizâncio, devolvera a outra. Já reparaste que em todas as cidades divididas
é a parte oriental a sacrificada?
Estás a ser
injusta, muito injusta.
Amu
interrompera a conversa e ela já não teve oportunidade de explicar à outra qual
a injustiça que queria dizer. E agora não a sabia dizer. Talvez preferisse não
acordar, para o inevitável juízo de águia, para o corte de lâmina entre a
vergonha e a culpa, entre a honra e a responsabilidade, entre a tribo e o
indivíduo, entre a bola de arame e feltro de tradições cruzadas e o ar livre
das opções solitárias.
Pesou-as,
afagou-as, eram só imagens, a da primita escura e magra, a da dona da casa de
roupa a flutuar e sempre com um dito jocoso sobre a roda do mundo. Tinham
estado ali sentadas à mesa do jardim de inverno, em tempos diferentes mas não
muito distantes. Tinham cozinhado, temperado para ela e para Amu e para outros
que se perderam no limar dos dias mas que agora talvez fosse necessário
recuperar para a cena; que cena?
Acendeu uma
vela, enrolou-se em lã e cabedal preto. Lembrou-se de ter visto dias antes na
televisão uma actriz, que fizera um estágio em palcos americanos, afirmar que o
preto já não era o traje de trabalho curvado no campo das nossas avós mas o
hábito quotidiano das netas nova-iorquinas.
Perfumou-se,
embalsamou-se para sair com Amu, deu-lhe o braço e seguiram pela neve, como
dois bonecos desarticulados de todos os fios conhecidos, com os dedos
enregelados para agarrar os fios que imaginavam ver no ar.
Pararam em
cima da ponte. O rio não tinha gelado, o sol espalhava-se no céu friorento e
translúcido. Só então reparou que Amu se tinha esquecido das luvas e
ofereceu-se para lhe massajar os dedos, enquanto as gaivotas piavam ao
sobrevoar um barco que passava por debaixo da ponte.
Não havia
tréguas. Tão-pouco sabia como retomar a guerra.”
Teresa Salema In “ Mulher na Guerra”,
Antologia de textos on-line da autoria de escritoras portuguesas e africanas
de expressão portuguesa do P.E.N. Clube Português
Uma literatura límpida, serena, convincente, sem esforço, ouvida e ouvinte, uma prosa clara, orgulhosamente evidente... Eis, uma literatura moderna, escorrida, sem arrebiques, em direcção aos dias que hâo-de-vir!
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