«Leves e de um azul metálico, movidas
por uma brisa contrária suave, quase imperceptível, as ondas do Mar Adriático
rolavam ao encontro da armada imperial, quando esta, tendo à esquerda as
colinas rasas e cada vez mais próximas da costa calabresa, se dirigia para o porto
de Brindisi e então, quando a solidão do mar cheia de sol, mas mesmo assim tão
prenunciadora de morte, deu lugar à pacífica alegria da actividade humana,
quando as águas, suavemente brilhantes com a proximidade da existência de
homens e das suas casas, se povoaram de variadíssimos barcos, uns que também se
dirigiam para o porto, outros que dalí saíam, então, quando os barcos de
pescadores com as sua velas castanhas estavam precisamente a sair dos pequenos
molhes de todas as inúmeras aldeias e povoações ao longo da orla salpicada de
branco, para se dirigirem à sua pesca nocturna, então a água ficou quase tão
lisa como um espelho; como uma madrepérola, abrira-se por cima a concha do céu,
anoitecia, e sentia-se o cheiro a lenha das lareiras, sempre que o vento trazia
os sons da vida, uma martelada ou um grito, desde a costa até ao mar.»
“A Morte de Virgílio “ é uma obra de excelência do escritor austríaco Hermann Broch (1886-1951).Estruturada quase como um monólogo interior, embora construído na terceira pessoa, narra as últimas dezoito horas de vida do poeta Virgílio (70 a.C. – 19 a.C.).
A agonia de Virgílio, a iminência da morte permitem tecer uma conflitualidade e reflexão psicológicas que conferem a esta obra o estatuto de um excepcional romance-poema. Virgílio que havia sido trazido da Grécia por Augusto para morrer na sua terra, Andes, perto de Mântua, não chega lá. Já era muito tarde para ir até ao norte da Itália. A reflexão e morte do grande poeta de Mântua acontece ali mesmo em Brindisum (hoje Brindisi).
A obra está dividida em quatro partes: Água (a chegada), Fogo (a descida), Terra (a expectativa) e o Ar (o retorno), o que faz da narração uma espécie de caminho iniciático."
A agonia de Virgílio, a iminência da morte permitem tecer uma conflitualidade e reflexão psicológicas que conferem a esta obra o estatuto de um excepcional romance-poema. Virgílio que havia sido trazido da Grécia por Augusto para morrer na sua terra, Andes, perto de Mântua, não chega lá. Já era muito tarde para ir até ao norte da Itália. A reflexão e morte do grande poeta de Mântua acontece ali mesmo em Brindisum (hoje Brindisi).
A obra está dividida em quatro partes: Água (a chegada), Fogo (a descida), Terra (a expectativa) e o Ar (o retorno), o que faz da narração uma espécie de caminho iniciático."
"Nada do
que é terreno consegue realmente abandonar o sono e só quem nunca esquecer a
noite que traz consigo consegue fechar o anel, consegue voltar da
intemporalidade do começo à do fim, consegue empreender sempre de novo o
percurso circular, ele próprio astro na imutabilidade do decorrer do tempo,
emergindo da escuridão, desaparecendo na escuridão, nascimento e renascimento
no reino nocturno e do reino nocturno, acolhido pelo dia, cuja claridade
penetrou na escuridão, dia que contém a noite: sim, assim tinham sido as
noites, todas as noites da sua vida, todas as noites através das quais ele
tinha andado, cheio de medo da inconsciência, que ameaça sob a noite, cheio de
medo da ausência de sombras que está sobre eles, cheio de medo de abandonar Pã,
cheio de um medo que conhece os perigos de uma dupla intemporalidade, sim,
assim tinham sido aquelas noites, ligadas ao limiar da dupla despedida, noites
do sono do mundo imutavelmente constante, se bem que nas praças, nas ruas, nas
tabernas, absolutamente constantes em cidades e mais cidades, desde o início,
ecoando inaudível das lonjuras do tempo e mesmo por isso insistentemente
percebidas, os homens bramavam, sono também isto, embora nos salões de festas e
mais festas os poderosos do mundo se deixassem homenagear, rodeados de archotes
e de música, sorrindo-lhes rostos e mais rostos, cortejados por corpos e mais
corpos e eles próprios sorrindo, eles próprios cortejando, sono também isto,
embora ardessem as fogueiras das sentinelas, não só em frente dos castelos, mas
também lá fora, onde havia guerra, nas fronteiras , nos rios negros como a
noite e nas orlas das florestas sussurrantes de noite e também sob os
agressivos e estonteantes gritos dos bárbaros que emergem na escuridão, sono
isto também, ais sono como o dos velhos desnudos que em antros fedorentos
dormiam o último resto de vigília dos seus corpos, como o dos bebés que sonham
sem sonhos partindo da miséria do seu nascimento para a vigília estúpida de uma
vida futura, como o do grupo de escravos acorrentados nos porões dos navios,
que como vermes atordoados estavam estendidos nos bancos, nas pranchas, nas
pilhas das amarras, sono e mais sono, rebanho e mais rebanho, erguidos acima da
indistinção do seu solo original, como cadeias de colinas, que repousam na planície,
afundando-se no inalteravelmente materno, no permanente regresso que ainda não
é intemporalidade e que no entanto a gera de novo em cada uma das noites
terrenas; sim, assim tinham sido estas noites, assim sempre elas tinham sido,
assim também era esta, talvez para sempre, noite na soleira equilibrada entre a
intemporalidade e o tempo, entre a despedida e o regresso, medo e salvação, e
ele, preso à soleira, noite após noite esperando na soleira, com a vista turva
pelo lusco-fusco da orla da noite, nas trevas da orla do mundo, ele, conhecendo
o acontecimento do sono, ele tinha sido levado até ao inalterável, e
tornando-se ele próprio forma, foi arremessado para trás e lançado para cima
para as esferas da poesia, para o reino intermédio do conhecer terreno, para o
reino intermédio das mães, da sabedoria e da poesia, para o sonho, que está
para além do sonho e atinge o renascimento, , a poesia.
Fuga, oh
fuga! Oh noite, a hora da poesia. Porque a poesia é uma espera vigilante, no
crepúsculo, poesia é abismo com prenúncios de crepúsculo, é espera na soleira,
é simultaneamente comunidade e solidão, é mistura e medo da mistura, sem
impudícia na mistura, tão sem impudícia como o sonho dos rebanhos adormecidos,
e no entanto medo de uma tal impudícia: oh, poesia é espera, ainda não partida,
mas constante despedida."
Hermann Broch
,(AÁgua : A chegada) in “ A Morte de
Virgílio” Tradução de
Maria Adélia Silva Melo, Ed. Relógio D’Água
Entre a alfa e ómega, entre o anúncio da vinda e o ocaso da vida, correu muita água por debaixo das pontes, e veio a aurora e esperámos o crepúsculo, veio a noite e esperámos um novo anúncio, escutando o encontro da água corrente com a urze e a penedia, na direcção oceânica da verdade, em procura da Poesia, como motivo para lutarmos pelo acto de existir. Hermann Broch em "A Morte de Vergílio" vai mais longe, mostrando-nos como o final terreno de um poeta pode ser motivo para uma revolução na nossa concepção de Arte. Motivo para recapitularmos toda a sabedoria. Estamos, pois, perante uma prosa poética a toda a dimensão, ardente na procura, vincadamente introspectiva, cheia de uma lucidez deslumbrante. Todavia prudente, e com que prudência, roçando a lógica e a anti-lógica, expressão tão subtil e mesmo interpretativa como levantamento pictórico humano e paisagístico, quando os elementos como a água, o fogo, a terra, e os sentimentos como a dor, e a angústia, o prazer, e a noção de finito são e continuam a ser presença constante na hora final da libertação. Em "A Morte de Vergílio", ouve-se tocar o clarim da poética imago-imagética com uma clarividência e assombro de pensamento inesperados, convidativos, tornando a obra de uma inadiável leitura...
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