quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Não havia tréguas


Agendas
"Recorda que naquele dia, tinha chegado a casa particularmente cansada. Não sabia porquê, gratificava-a o que fazia naquela cidade onde não sabia se queria ficar a viver para sempre. O que era sempre, o que queria dizer sempre senão um levantar de cercanias próximas, de impedimentos opacos, um esquecer das agendas que nela se iam criando à medida que tocava uma melodia telefónica, escondida em qualquer saco.
Nunca estava sem trabalho. Às vezes era Amu que lhe recebia telefonemas, às vezes mails, raramente lhe vinham bater à porta e disso ela não gostava, de ser pressionada por um toque de mão, de ver-se fechada num olhar que não aceitava recusas.
És o irmão que não tive, dizia-lhe muitas vezes. Eram da mesma idade e partilhavam a casa que uma amiga lhes tinha confiado ao ir para fora por tempo indeterminado, largando um trabalho certo na loja de um padrinho, uma rotina segura para seguir um fio intuitivo, o apelo incerto, um lugar longínquo. Agora, nem ela nem Amu sabiam do paradeiro da dona da casa e tinham de a deixar envelhecer na fachada e nas paredes, apenas remendando uma ou outra janela, uma ou outra telha, um ou outro cano.
Chegou a casa cansada, adormeceu. Pensou antes de adormecer, embalada a olhar para as vigas no tecto, que todo o mundo à sua volta, prestes a deslizar para o lado, era um grande abrigo provisório, a respirar nas suas brechas. Sentia-lhe o ritmo tranquilo, como um deserto reduzido a uma paisagem interior, como um quadro recebido como recompensa por ter desertado de uma outra casa, onde se bebia e jogava e defraudava e a que tinha chamado familiar.
Amu correu a acordá-la sem bater à porta.
Ofegava.
A minha prima, ontem à noite. Morta no passeio, ao pé do terminal do autocarro. Não tinha documentação e os irmãos dela andam a monte. A polícia acha que foi mais um desses ajustes de contas para salvar a honra da família. Ela tinha feito a escola superior de educação, dava aulas, fumava, usava saltos altos e roupa apertada, não punha lenço nem para as reuniões familiares de fim de semana. Dizia que queria viver como no país, como tu, como eu.
Lembrava-se dessa primita pálida e escura, tão aplicada no estudo de tantas línguas e que disse uma vez a brincar que queria estudar para espia.
Lembrava-se que lhe respondeu: para seres uma verdadeira agente secreta tens de ser mais romana em Roma.
Em Roma, ou em Bizâncio, devolvera a outra. Já reparaste que em todas as cidades divididas é a parte oriental a sacrificada?
Estás a ser injusta, muito injusta.
Amu interrompera a conversa e ela já não teve oportunidade de explicar à outra qual a injustiça que queria dizer. E agora não a sabia dizer. Talvez preferisse não acordar, para o inevitável juízo de águia, para o corte de lâmina entre a vergonha e a culpa, entre a honra e a responsabilidade, entre a tribo e o indivíduo, entre a bola de arame e feltro de tradições cruzadas e o ar livre das opções solitárias.
Pesou-as, afagou-as, eram só imagens, a da primita escura e magra, a da dona da casa de roupa a flutuar e sempre com um dito jocoso sobre a roda do mundo. Tinham estado ali sentadas à mesa do jardim de inverno, em tempos diferentes mas não muito distantes. Tinham cozinhado, temperado para ela e para Amu e para outros que se perderam no limar dos dias mas que agora talvez fosse necessário recuperar para a cena; que cena?
Acendeu uma vela, enrolou-se em lã e cabedal preto. Lembrou-se de ter visto dias antes na televisão uma actriz, que fizera um estágio em palcos americanos, afirmar que o preto já não era o traje de trabalho curvado no campo das nossas avós mas o hábito quotidiano das netas nova-iorquinas.
Perfumou-se, embalsamou-se para sair com Amu, deu-lhe o braço e seguiram pela neve, como dois bonecos desarticulados de todos os fios conhecidos, com os dedos enregelados para agarrar os fios que imaginavam ver no ar.
Pararam em cima da ponte. O rio não tinha gelado, o sol espalhava-se no céu friorento e translúcido. Só então reparou que Amu se tinha esquecido das luvas e ofereceu-se para lhe massajar os dedos, enquanto as gaivotas piavam ao sobrevoar um barco que passava por debaixo da ponte.
Não havia tréguas. Tão-pouco sabia como retomar a guerra.”
Teresa Salema In “ Mulher na Guerra”, Antologia de textos on-line da autoria de escritoras portuguesas e africanas de expressão portuguesa do P.E.N. Clube Português

1 comentário:

  1. Uma literatura límpida, serena, convincente, sem esforço, ouvida e ouvinte, uma prosa clara, orgulhosamente evidente... Eis, uma literatura moderna, escorrida, sem arrebiques, em direcção aos dias que hâo-de-vir!

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