Fomos ao soberbo registo memorialistíco de Eugénio Lisboa, composto por sete volumes, para retirar do V volume as páginas que se seguem:
Páginas do Diário
por Eugénio Lisboa
"O meu
diário, que interrompo mais uma vez, não regista o tempo que passámos em
Cambridge, até ao regresso a Lisboa. A Manucha acabara de ser mãe, num parto um
pouco complicado (perda temporária de visão), que levara a Antonieta a
deslocar-se a Cambridge, por umas semanas.
Como era meu
costume, durante as estadias em Cambridge, passeei-me pelas ruas daquele burgo
de uma beleza singular. Banhada pelo rio Cam, bom para passeios e regatas, a
cidade tem cerca de 125 000 habitantes, dos quais, 25 000 (1/5) são
estudantes. Tem uma vida suave, apenas perturbada pelas hordas de turistas que
costumam atropelar e poluir os locais sagrados que há pelo mundo. O icons mais
citados são a famosa Capela do King’s College, o Laboratório Cavendish e a
famosa Biblioteca da Universidade de Cambrdge. Há boas livrarias e tentadores
alfarrabistas, além das chamadas “Bargain Bookshops”, onde se compram, pelo
preço da uva mijona, as primeiras edições, em capa dura, por preços inferiores
aos “paperbacks” dos mesmos livros, entretanto lançados no mercado. Ali me
abasteci de livros preciosos, esportulando pouco…
No Trinity
College, pude ver, com alguma emoção, manuscritos de Newton…
O encanto
destas cidades inglesas, pequenas, bem cuidadas, aprazíveis e cheias de
história, com o seu inevitável chá com scones, à tarde, é indiscutível. Não sei
se seria capaz de viver numa delas, durante muito tempo. Há, naquela vida,
sobretudo na universitária, algo de monacal, com o seu quê de docemente
alienante… Bem sei que Londres está perto, com o seu carrocel de seduções… Mas…
Tive sempre algum preconceito (muito instintivo) contra Oxford e Cambridge e,
sobretudo, contra algum “contentismo” de quem lá vive e habita.
Em
Cambridge, pululam os fantasmas dos grandes criadores de ciência e até
cruzamos, ocasionalmente, algum ainda vivo: lembro-me de, atravessando um
parque, quase ter acotovelado Stephen Hawking… E foi-me apontado o bar onde os
descobridores do ADN lançaram o seu excitado Eureka. Em Cambridge, abriga-se,
por debaixo daquela beleza tranquila e bem cuidada, muito tumulto.
Mas a visita
chegou ao fim: a Manucha estabilizara, a Laura viera ao mundo, a vida deles,
muito apoiada no Michael, marido impecável, iria seguir, com mais do que alguma
inquietação resultante de uma doença que o parto teria ajudado a revelar-se.
Regressámos
a Lisboa. Passa a falar, de novo, o meu diário.
+++
27.6.96 –
Regressei a Lisboa há dias e recomeçou a dança. Compromissos cancelados por
razões de força maior, almoços marcados e esquecidos, assim vai a nossa classe
dirigente. Os melhores são iguais aos piores e todos se queixam de todos. País
desorientado, sem valores – mas todos falam de valores. A retórica é cada vez
mais gongórica e ensarilhada. Busca-se sempre o vocábulo menos óbvio [às vezes,
diz-se “devolver” em vez de “retribuir”…], o mais arrebicado e o menos adequado
(mais sonoro e, aparentemente, mais
“chic”). Embebedamo-nos com palavras, com encontros, com “estudos”, com
relatórios e com “comissões”. E não produzimos nada e, certamente, não
produzimos riqueza. Haverá saída para isto? Haverá solução para um país com
esta gente? [2014: previa bem. Agora, em 2014, vê.se bem o resultado de todo
aquele palavriado sonoro e inconsequente…]
28.6.96,
Lisboa – A lei do Totobola foi rejeitada no Parlamento. Não posso estar mais de
acordo. Há necessidade, mais, há urgência de quebrar a espinal medula aos
gangsters do futebol. Fazê-los engolir a arrogância e as ameaças. Fazê-los
pagar e, não pagando, metê-los na cadeia… [eu sei que não há prisão por
dívidas, mas seria bom haver uma lei de excepção, para esta máfia sinistra]. É
assim que nascem as máfias e as camorras. Eles dizem que têm força e nós acatamos que eles a tenham. Corolário:
passam mesmo a tê-la. É urgente acabar com o equívoco. Dizer-lhes que não os
tememos. Que eles só existem, se nós
deixarmos. Passarmos nós a ter a
força.
Desde ontem,
interessante colóquio sobre Participação
Pública e Planeamento, no auditório da FLAD. O colóquio visa a “prática da
democracia ambiental.” A minha dúvida é:mesmo aceitando que a prática da
democracia ambiental é a melhor de
que dispomos, será que este melhor é
suficientemente bom? Se, como dizem os cientistas, se impõem soluções radicais, será a prática democrática
produtora de radicalismo? Por outras palavras, estaremos nós “foutus”? Mas será
que a saída da via democrática produz soluções melhores? Nesse caso, não haverá
mesmo saída? Então, para què todos estes colóquios? Para morrermos lúcidos?
No regresso
de Inglaterra, vim encontrar uma carta do Taborda de Vasconcelos, reagindo à
minha Crónica dos Anos da Peste. Que
foi, para ele, uma surpresa. Que os meus textos mais antigos já me mostravam
adulto. Que não cresci: já apareci
crescido. Acho que o problema é outro: fui crescendo, sem escrever. Quando peguei na caneta, já tinha lido e reflectido
muito. Tinha escrito por dentro. A
minha preocupação era compreender,
não era escrever. Nunca me consumiu o furor de noircir du papier..
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula- Memórias V (1995-2015),Editora Opera Omnia, Outubro de 2015 , pp.93-95
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