sábado, 3 de fevereiro de 2024

Graham Greene e o cinema

 

Graham Greene e o cinema
por Eugénio Lisboa
"Passou em 2 de Outubro do ano passado (2004) o primeiro centenário do nascimento de Graham Greene, de quem William Golding disse que “será lido e lembrado como o mais acabado cronista da consciência e da ansiedade do século XX”. Frequentemente classificado como “romancista católico”, Greene, cuja conversão ao catolicismo teve algo de oportunismo, recusava tal classificação, dizendo ser mais justo tê-lo como um católico que também escrevia romances. Aliás, sobre este debatido e ardido ponto, creio ter sido o conhecido romancista, ensaísta e professor David Lodge quem, com maior agudeza, poder de síntese e felicidade, situou a questão, ao afirmar: “O catolicismo, como um sistema público de leis e de dogmas, está muito longe de ser uma chave adequada para a ficção de Greene. Há uma boa dose de provas, internas e externas, de que o catolicismo, na ficção de Greene, não é um corpo de crença que requeira exposição e que peça um acordo ou um desacordo categóricos, mas antes um sistema de conceitos, uma fonte de situações e um reservatório de símbolos, por meio dos quais ele consegue ordenar e dramatizar certas intuições sobre a natureza de experiência humana – intuições a que chegou antes e independentemente da sua adopção da fé católica. Visto a esta luz”,  concluía o autor de Changing Places, “o catolicismo de Greene pode ser tido não como um fardo estropiador da liberdade artística, mas, sim, como um fundo artístico positivo.”
Entre nós, não digo que o centenário desta figura maior, sedutora e inquietante da literatura do século XX tenha passado despercebido (Sintra e Cascais, por exemplo, assinalaram a efeméride), no entanto não lhe foi dado o relevo que indiscutivelmente merecia.
Sendo para muitos conhecido, menos como o grande romancista que foi – Brighton Rock, The Power and the Glory, The Ministry of Fear, The Heart of the Matter, The End of the Affair, The Quiet American, The Comedians, The Honorary Consul e The Human Factor são marcos incontornáveis da grande ficção do século XX – do que como o responsável por filmes como The Third Man e The Fallen Idol, parece adequado dedicar algumas palavras à ambígua relação de Greene com a sétima arte. Essas relações não foram nem simples nem lineares: houve sempre um misto de fascínio, de algum amor, de algum desprezo e, até, de alguma gratidão.
Greene recordava aqueles depressivos anos trinta, na esteira do grande “crash” económico de 1929, durante os quais o pobre escritor não tinha dinheiro nem para pagar o gramofone, nem para cumprir a prestação do seguro de vida. Os anos quarenta – guerra e imediato pós-guerra – não foram melhores: com o papel racionado, mesmo os escritores bem acolhidos pelo público tinham as suas vendas limitadas, o que parecia não ser do conhecimento de jornalistas, que invejavam aqueles escritores inadvertidamente considerados como... “best-sellers”. A verdade é que os números contavam uma história bem diferente. Num artigo de 1958, “The Novelist and the Cinema – A Personal Experience”, Greene abre-nos os olhos para esta realidade, nestes termos: “Posso apenas dar conta do meu caso e registar que, depois de onze anos [de labuta] e de onze livros [publicados], os números da minha primeira edição tinham aumentado em 500 exemplares – de 2500 impressos, do meu primeiro livro, para 3000, do meu décimo primeiro. Nesses anos”, acrescenta Greene, com alguma melancolia,” nem a BBC, nem o Central Office of Information se tinham tornado os patronos de um jovem autor ou, nos da minha idade, de um autor-não-assim-tão-jovem.”
Um recurso para o autor que se não podia sustentar a si e à sua família só com o produto da venda dos seus romances residia na ingrata tarefa de fazer recensões críticas de livros para os jornais: tarefa “mortífera”, achava Greene, por ter que dar o seu tempo e a sua atenção a obras que “eram, claramente, alimento para os vermes”.
Neste contexto, a saída era, obviamente, o cinema: vender os seus direitos de autor para adaptações dos seus livros ao cinema ou escrever, ele próprio, guiões para filmes, baseados em livros de terceiros, ou ainda, escrever directamente para o cinema, sem prévia existência de um romance de partida. De tudo isto viria ele a beneficiar ou a sofrer...
Em 1932 Greene conseguiu vender à 20th Century Fox o seu quarto romance – Stamboul Train – por 1500 libras. Tinha, nessa altura, no banco, a modestíssima quantia de 30 libras, a mulher estava grávida e fora-lhe recusado um emprego no Catholic Herald porque, muito à inglesa, lhe achavam habilitações excessivas. As 1500 libras da Fox vieram permitir-lhe continuar a escrever por algum tempo, sem preocupações de maior. Dois anos depois, em 1934, vendeu os direitos de outro romance – A Gun for Sale - à Paramount, por 2500 libras. Não era uma fortuna, ao contrário do que propalava a inveja clássica dos jornalistas, mas permitiram ao escritor continuar a escrever sem grandes angústias ou insónias. Por tudo isto, Greene pôde afirmar que o seu primeiro sentimento, quando falava de filmes, era o de gratidão, porque foram eles que lhe permitiram, num período crucial, continuar a sua carreira de escritor. E dava até exemplos de outros escritores “better than myself” que tiveram iguais motivos de gratidão: William Faulkner, Ernest Hemingway... Isto, pelo que diz respeito à gratidão. Depois, vem o resto...
O resto, tem, por exemplo, que ver com o tratamento que os produtores de cinema dão ou fazem dar aos livros adaptados ao écran. Uma das situações é a de o autor do livro não ser o autor do “script” baseado no seu livro. Greene observava, com alguma merecida ferocidade, que, quando um autor vende um livro a Hollywood vende-o mesmo, totalmente, sem apelo, nem agravo. Os contratos na Meca do cinema, dizia ele, são compridíssimos, compactos e espessos como o próprio romance de que se apoderam, mas, tudo aquilo pode ser resumido numa fórmula muito simples: o autor não tem quaisquer direitos sobre a adaptação. O produtor pode alterar tudo o que lhe apetecer: pode mesmo, insinuava Greene, transformar uma tragédia de judeus, no East End de Londres, numa comédia musical passada em Palm Springs. Nem sequer tem qualquer obrigação de manter o título do livro embora, de modo geral e por razões comerciais, este seja preservado. No entanto, no caso do romance The Power and the Glory, talvez o primeiro grande romance de Greene, o título não foi respeitado no filme que John Ford dirigiu a partir do livro: o título, belíssimo, passou a ser, no écran, The Fugitive. O pior porém não foi a traição feita ao título: outros agravos maiores se seguiram, que foram atingir a própria essência da narrativa. Por exemplo, o romance lidava com um padre mexicano bêbado, que tivera uma filha bastarda e que, mesmo aos tropeções e com alguma cobardia à mistura, lá ia levando a cabo o seu ministério de sacerdote, durante as brutais perseguições religiosas, no México dos anos trinta. O filme que Ford  dirigiu passou a ser a história de um padre extremamente pio, muito heróico e nada alcoólico, visto que a bebedeira deixou, no filme de o afligir. E, para tudo ser edificantemente a preto e branco, a filha bastarda do padre (no romance) passou a ser (no filme) a filha ilegítima do polícia que o perseguia... Como observava Greene, com mais do que alguma filosofia, “uma pessoa habitua-se a estas coisas. Ganhamos o dinheiro, podemos continuar a escrever por mais um ano ou dois, não há grande razão de queixa.”
Outro caso penoso e altamente frustrante foi o da adaptação cinematográfica do romance The Quiet American. O filme, da responsabilidade do prestigiado realizador, Manckiewicz, traía da maneira mais descarada o alto teor explosivo do romance. Se a obra de Greene lhe ganhou para sempre o ódio do “establishment” mais patrioteiro dos Estados Unidos, devido à sua análise crítica do comportamento da América no Vietname, o filme, observaria Greene, “era uma verdadeira obra de desonestidade política. Torna o americano extremamente sensato e o inglês um pateta nas mãos dos comunistas. E”, acrescenta, “ o «casting» era simplesmente pavoroso: Phuong, a rapariga vietnamita era desempenhada por uma italiana.” Num ensaio publicado no ano seguinte, Graham Greene seria ainda mais violento, afirmando: “Poder-se-ia acreditar que o filme foi feito deliberadamente para atacar o livro e o seu autor. Mas o livro baseava-se num conhecimento muito mais profundo da guerra da Indochina do que aquele que os americanos possuíam e sou suficientemente vaidoso para acreditar que o livro irá sobreviver alguns anos ao filme incoerente de Manckiewcz.”
Apesar de tudo isto, repetimos que Graham Greene nunca deixou de sentir uma justa gratidão para com uma arte que o ajudara a sobreviver como escritor. No entanto, o autor de The Heart of the Mater, punha a isto uma grande reserva, visto ter chegado à conclusão de que o escritor nunca deve aceitar ser o empregado de ninguém senão de si próprio.”
O outro aspecto da sua ligação ao cinema – pelo menos tão frustrante como o de ver os seus próprios livros adaptados ao  écran – foi o de aceitar ser “script-writer” de filmes inspirados em livros da autoria de terceiros. “Este aspecto da minha associação com os filmes”, viria ele a dizer, em 1958, “é o que mais lamento e, no futuro, gostaria de evitá-lo, se os impostos mo permitirem.” Um exemplo gritante deste tipo de frustração deu-se com a adaptação ao cinema, por ele feita, de uma pequena novela de John Galsworthy (o autor de The Forsythe Saga). A  novela, intitulada The First and the Last (encontra-se traduzida em português e incluída na saudosa colecção “As Melhores Novelas dos Melhores Novelistas, da Editorial Inquérito) contava, em resumo, uma história bastante sensacional: um assassino não apanhado pela justiça mata-se, depois de saber que um inocente pagara, com a forca, pelo seu crime. Terminado o “script”, Greene teve a surpresa amarga de verificar que o British Board of Film Censors proibia que o cinema falasse de suicídios e de erros judiciários... Sem estes dois pilares da novela de Galsworthy, lá se ia a história. Mesmo assim, imagine-se como!, o filme fez-se e nele se passearam Laurence Olivier e Vivien Leigh, nada empenhados na história, mas profundamente empenhados um no outro...
De outro filme, The Green Cockatoo, de que foi “script-writer”, Greene sentia tanta vergonha, que preferia não falar nele. A crítica ao filme justifica a vergonha do autor do “script”.
Mas foi com The Third Man, por si escrito directamente para a  pantalha, e com o inesquecível The Fallen Idol, de que escreveu o “script” inspirado num conto também seu, que o autor de The Comedians atingiu o apogeu feliz das suas relações com a sétima arte: a este período chamava ele os seus “halcyon years” ( dias de tranquilidade).
Eis um resumo muito resumido dos principais marcos da relação complexa de Graham Greene com o cinema. Embora muitas vezes frustrante, dessa relação ficou uma gratidão duradoura e os “anos de tranquilidade” que lhe foram oferecidos por dois indiscutíveis triunfos: uma relação frutuosa, apesar de tudo. Num texto aparecido, já tarde na sua vida, no livro Ways of Escape (1980), o autor de Terceiro Homem resume assim o se percurso e a conclusão a que chegou: “A minha experiência de escrever para o cinema tem sido afortunada e feliz e, contudo, com que alívio regressei depois àquele negócio de um só homem, àquela privacidade de um compartimento no qual assumo a responsabilidade inteira pelo fracasso.”
Eugénio Lisboa, em Ipsissima Verba, LER, 2005 

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