Graham Greene e o cinema
por Eugénio Lisboa
"Passou em 2 de Outubro do ano passado (2004) o primeiro
centenário do nascimento de Graham Greene, de quem William Golding disse que
“será lido e lembrado como o mais acabado cronista da consciência e da
ansiedade do século XX”. Frequentemente classificado como “romancista
católico”, Greene, cuja conversão ao catolicismo teve algo de oportunismo,
recusava tal classificação, dizendo ser mais justo tê-lo como um católico que
também escrevia romances. Aliás, sobre este debatido e ardido ponto, creio ter
sido o conhecido romancista, ensaísta e professor David Lodge quem, com maior
agudeza, poder de síntese e felicidade, situou a questão, ao afirmar: “O
catolicismo, como um sistema público de leis e de dogmas, está muito longe de
ser uma chave adequada para a ficção de Greene. Há uma boa dose de provas,
internas e externas, de que o catolicismo, na ficção de Greene, não é um corpo
de crença que requeira exposição e que peça um acordo ou um desacordo
categóricos, mas antes um sistema de conceitos, uma fonte de situações e um
reservatório de símbolos, por meio dos quais ele consegue ordenar e dramatizar
certas intuições sobre a natureza de experiência humana – intuições a que
chegou antes e independentemente da sua adopção da fé católica. Visto a esta
luz”, concluía o autor de Changing
Places, “o catolicismo de Greene pode ser tido não como um fardo
estropiador da liberdade artística, mas, sim, como um fundo artístico
positivo.”
Entre nós, não digo que o centenário desta figura
maior, sedutora e inquietante da literatura do século XX tenha passado
despercebido (Sintra e Cascais, por exemplo, assinalaram a efeméride), no
entanto não lhe foi dado o relevo que indiscutivelmente merecia.
Sendo para muitos conhecido, menos como o grande
romancista que foi – Brighton Rock, The Power and the Glory, The Ministry of
Fear, The Heart of the Matter, The End of the Affair, The Quiet American, The
Comedians, The Honorary Consul e The Human Factor são marcos
incontornáveis da grande ficção do século XX – do que como o responsável por
filmes como The Third Man e The Fallen Idol, parece adequado
dedicar algumas palavras à ambígua relação de Greene com a sétima arte. Essas
relações não foram nem simples nem lineares: houve sempre um misto de fascínio,
de algum amor, de algum desprezo e, até, de alguma gratidão.
Greene recordava aqueles depressivos anos trinta, na
esteira do grande “crash” económico de 1929, durante os quais o pobre escritor
não tinha dinheiro nem para pagar o gramofone, nem para cumprir a prestação do
seguro de vida. Os anos quarenta – guerra e imediato pós-guerra – não foram
melhores: com o papel racionado, mesmo os escritores bem acolhidos pelo público
tinham as suas vendas limitadas, o que parecia não ser do conhecimento de
jornalistas, que invejavam aqueles escritores inadvertidamente considerados
como... “best-sellers”. A verdade é que os números contavam uma
história bem diferente. Num artigo de 1958, “The Novelist and the Cinema – A
Personal Experience”, Greene abre-nos os olhos para esta realidade, nestes
termos: “Posso apenas dar conta do meu caso e registar que, depois de onze anos
[de labuta] e de onze livros [publicados], os números da minha primeira edição
tinham aumentado em 500 exemplares – de 2500 impressos, do meu primeiro livro,
para 3000, do meu décimo primeiro. Nesses anos”, acrescenta Greene, com alguma
melancolia,” nem a BBC, nem o Central Office of Information se tinham tornado
os patronos de um jovem autor ou, nos da minha idade, de um
autor-não-assim-tão-jovem.”
Um recurso para o autor que se não podia sustentar a
si e à sua família só com o produto da venda dos seus romances residia na
ingrata tarefa de fazer recensões críticas de livros para os jornais: tarefa
“mortífera”, achava Greene, por ter que dar o seu tempo e a sua atenção a obras
que “eram, claramente, alimento para os vermes”.
Neste contexto, a saída era, obviamente, o cinema:
vender os seus direitos de autor para adaptações dos seus livros ao cinema ou
escrever, ele próprio, guiões para filmes, baseados em livros de terceiros, ou
ainda, escrever directamente para o cinema, sem prévia existência de um romance
de partida. De tudo isto viria ele a beneficiar ou a sofrer...
Em 1932 Greene conseguiu vender à 20th Century Fox o
seu quarto romance – Stamboul Train – por 1500 libras. Tinha, nessa
altura, no banco, a modestíssima quantia de 30 libras, a mulher estava grávida
e fora-lhe recusado um emprego no Catholic Herald porque, muito à
inglesa, lhe achavam habilitações excessivas. As 1500 libras da Fox vieram
permitir-lhe continuar a escrever por algum tempo, sem preocupações de maior.
Dois anos depois, em 1934, vendeu os direitos de outro romance – A Gun for
Sale - à Paramount, por 2500 libras. Não era uma fortuna, ao contrário do
que propalava a inveja clássica dos jornalistas, mas permitiram ao escritor
continuar a escrever sem grandes angústias ou insónias. Por tudo isto, Greene
pôde afirmar que o seu primeiro sentimento, quando falava de filmes, era o de
gratidão, porque foram eles que lhe permitiram, num período crucial, continuar
a sua carreira de escritor. E dava até exemplos de outros escritores “better
than myself” que tiveram iguais motivos de gratidão: William Faulkner, Ernest
Hemingway... Isto, pelo que diz respeito à gratidão. Depois, vem o resto...
O resto, tem, por exemplo, que ver com o tratamento
que os produtores de cinema dão ou fazem dar aos livros adaptados ao écran. Uma
das situações é a de o autor do livro não ser o autor do “script”
baseado no seu livro. Greene observava, com alguma merecida ferocidade, que,
quando um autor vende um livro a Hollywood vende-o mesmo, totalmente,
sem apelo, nem agravo. Os contratos na Meca do cinema, dizia ele, são
compridíssimos, compactos e espessos como o próprio romance de que se apoderam,
mas, tudo aquilo pode ser resumido numa fórmula muito simples: o autor não
tem quaisquer direitos sobre a adaptação. O produtor pode alterar tudo o
que lhe apetecer: pode mesmo, insinuava Greene, transformar uma tragédia de
judeus, no East End de Londres, numa comédia musical passada em Palm Springs.
Nem sequer tem qualquer obrigação de manter o título do livro embora, de modo
geral e por razões comerciais, este seja preservado. No entanto, no caso do
romance The Power and the Glory, talvez o primeiro grande romance de
Greene, o título não foi respeitado no filme que John Ford dirigiu a partir do
livro: o título, belíssimo, passou a ser, no écran, The Fugitive. O pior
porém não foi a traição feita ao título: outros agravos maiores se seguiram,
que foram atingir a própria essência da narrativa. Por exemplo, o romance
lidava com um padre mexicano bêbado, que tivera uma filha bastarda e que, mesmo
aos tropeções e com alguma cobardia à mistura, lá ia levando a cabo o seu
ministério de sacerdote, durante as brutais perseguições religiosas, no México
dos anos trinta. O filme que Ford
dirigiu passou a ser a história de um padre extremamente pio, muito
heróico e nada alcoólico, visto que a bebedeira deixou, no filme de o afligir.
E, para tudo ser edificantemente a preto e branco, a filha bastarda do padre
(no romance) passou a ser (no filme) a filha ilegítima do polícia que o
perseguia... Como observava Greene, com mais do que alguma filosofia, “uma
pessoa habitua-se a estas coisas. Ganhamos o dinheiro, podemos continuar a
escrever por mais um ano ou dois, não há grande razão de queixa.”
Outro caso penoso e altamente frustrante foi o da
adaptação cinematográfica do romance The Quiet American. O filme, da
responsabilidade do prestigiado realizador, Manckiewicz, traía da maneira mais
descarada o alto teor explosivo do romance. Se a obra de Greene lhe ganhou para
sempre o ódio do “establishment” mais patrioteiro dos Estados Unidos, devido à
sua análise crítica do comportamento da América no Vietname, o filme,
observaria Greene, “era uma verdadeira obra de desonestidade política. Torna o
americano extremamente sensato e o inglês um pateta nas mãos dos comunistas.
E”, acrescenta, “ o «casting» era simplesmente pavoroso: Phuong, a rapariga
vietnamita era desempenhada por uma italiana.” Num ensaio publicado no ano
seguinte, Graham Greene seria ainda mais violento, afirmando: “Poder-se-ia
acreditar que o filme foi feito deliberadamente para atacar o livro e o seu
autor. Mas o livro baseava-se num conhecimento muito mais profundo da guerra da
Indochina do que aquele que os americanos possuíam e sou suficientemente
vaidoso para acreditar que o livro irá sobreviver alguns anos ao filme
incoerente de Manckiewcz.”
Apesar de tudo isto, repetimos que Graham Greene
nunca deixou de sentir uma justa gratidão para com uma arte que o ajudara a
sobreviver como escritor. No entanto, o autor de The Heart of the Mater, punha
a isto uma grande reserva, visto ter chegado à conclusão de que o escritor
nunca deve aceitar ser o empregado de ninguém senão de si próprio.”
O outro aspecto da sua ligação ao cinema – pelo
menos tão frustrante como o de ver os seus próprios livros adaptados ao écran – foi o de aceitar ser “script-writer”
de filmes inspirados em livros da autoria de terceiros. “Este aspecto da minha
associação com os filmes”, viria ele a dizer, em 1958, “é o que mais lamento e,
no futuro, gostaria de evitá-lo, se os impostos mo permitirem.” Um exemplo
gritante deste tipo de frustração deu-se com a adaptação ao cinema, por ele
feita, de uma pequena novela de John Galsworthy (o autor de The Forsythe
Saga). A novela, intitulada The
First and the Last (encontra-se traduzida em português e incluída na
saudosa colecção “As Melhores Novelas dos Melhores Novelistas, da Editorial
Inquérito) contava, em resumo, uma história bastante sensacional: um assassino
não apanhado pela justiça mata-se, depois de saber que um inocente pagara, com
a forca, pelo seu crime. Terminado o “script”, Greene teve a surpresa amarga de
verificar que o British Board of Film Censors proibia que o cinema falasse de
suicídios e de erros judiciários... Sem estes dois pilares da novela de
Galsworthy, lá se ia a história. Mesmo assim, imagine-se como!, o filme fez-se
e nele se passearam Laurence Olivier e Vivien Leigh, nada empenhados na
história, mas profundamente empenhados um no outro...
De outro filme, The Green Cockatoo, de que
foi “script-writer”, Greene sentia tanta vergonha, que preferia não falar nele.
A crítica ao filme justifica a vergonha do autor do “script”.
Mas foi com The Third Man, por si escrito
directamente para a pantalha, e com o
inesquecível The Fallen Idol, de que escreveu o “script” inspirado num
conto também seu, que o autor de The Comedians atingiu o apogeu feliz
das suas relações com a sétima arte: a este período chamava ele os seus
“halcyon years” ( dias de tranquilidade).
Eis um resumo muito resumido dos principais marcos
da relação complexa de Graham Greene com o cinema. Embora muitas vezes
frustrante, dessa relação ficou uma gratidão duradoura e os “anos de
tranquilidade” que lhe foram oferecidos por dois indiscutíveis triunfos: uma
relação frutuosa, apesar de tudo. Num texto aparecido, já tarde na sua vida, no
livro Ways of Escape (1980), o autor de Terceiro Homem resume
assim o se percurso e a conclusão a que chegou: “A minha experiência de
escrever para o cinema tem sido afortunada e feliz e, contudo, com que alívio
regressei depois àquele negócio de um só homem, àquela privacidade de um
compartimento no qual assumo a responsabilidade inteira pelo fracasso.”
Eugénio Lisboa, em Ipsissima Verba, LER, 2005
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