quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Páginas do Diário

Fomos ao soberbo registo memorialistíco de Eugénio Lisboa, composto por sete volumes, para retirar do V volume as páginas que se seguem:
Páginas do Diário
por Eugénio Lisboa
"O meu diário, que interrompo mais uma vez, não regista o tempo que passámos em Cambridge, até ao regresso a Lisboa. A Manucha acabara de ser mãe, num parto um pouco complicado (perda temporária de visão), que levara a Antonieta a deslocar-se a Cambridge, por umas semanas.
Como era meu costume, durante as estadias em Cambridge, passeei-me pelas ruas daquele burgo de uma beleza singular. Banhada pelo rio Cam, bom para passeios e regatas, a cidade tem cerca de 125 000 habitantes, dos quais, 25 000 (1/5) são estudantes. Tem uma vida suave, apenas perturbada pelas hordas de turistas que costumam atropelar e poluir os locais sagrados que há pelo mundo. O icons mais citados são a famosa Capela do King’s College, o Laboratório Cavendish e a famosa Biblioteca da Universidade de Cambrdge. Há boas livrarias e tentadores alfarrabistas, além das chamadas “Bargain Bookshops”, onde se compram, pelo preço da uva mijona, as primeiras edições, em capa dura, por preços inferiores aos “paperbacks” dos mesmos livros, entretanto lançados no mercado. Ali me abasteci de livros preciosos, esportulando pouco…
No Trinity College, pude ver, com alguma emoção, manuscritos de Newton…
O encanto destas cidades inglesas, pequenas, bem cuidadas, aprazíveis e cheias de história, com o seu inevitável chá com scones, à tarde, é indiscutível. Não sei se seria capaz de viver numa delas, durante muito tempo. Há, naquela vida, sobretudo na universitária, algo de monacal, com o seu quê de docemente alienante… Bem sei que Londres está perto, com o seu carrocel de seduções… Mas… Tive sempre algum preconceito (muito instintivo) contra Oxford e Cambridge e, sobretudo, contra algum “contentismo” de quem lá vive e habita.
Em Cambridge, pululam os fantasmas dos grandes criadores de ciência e até cruzamos, ocasionalmente, algum ainda vivo: lembro-me de, atravessando um parque, quase ter acotovelado Stephen Hawking… E foi-me apontado o bar onde os descobridores do ADN lançaram o seu excitado Eureka. Em Cambridge, abriga-se, por debaixo daquela beleza tranquila e bem cuidada, muito tumulto.
Mas a visita chegou ao fim: a Manucha estabilizara, a Laura viera ao mundo, a vida deles, muito apoiada no Michael, marido impecável, iria seguir, com mais do que alguma inquietação resultante de uma doença que o parto teria ajudado a revelar-se.
Regressámos a Lisboa. Passa a falar, de novo, o meu diário.
 
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27.6.96 – Regressei a Lisboa há dias e recomeçou a dança. Compromissos cancelados por razões de força maior, almoços marcados e esquecidos, assim vai a nossa classe dirigente. Os melhores são iguais aos piores e todos se queixam de todos. País desorientado, sem valores – mas todos falam de valores. A retórica é cada vez mais gongórica e ensarilhada. Busca-se sempre o vocábulo menos óbvio [às vezes, diz-se “devolver” em vez de “retribuir”…], o mais arrebicado e o menos adequado (mais sonoro e, aparentemente, mais “chic”). Embebedamo-nos com palavras, com encontros, com “estudos”, com relatórios e com “comissões”. E não produzimos nada e, certamente, não produzimos riqueza. Haverá saída para isto? Haverá solução para um país com esta gente? [2014: previa bem. Agora, em 2014, vê.se bem o resultado de todo aquele palavriado sonoro e inconsequente…]
 
28.6.96, Lisboa – A lei do Totobola foi rejeitada no Parlamento. Não posso estar mais de acordo. Há necessidade, mais, há urgência de quebrar a espinal medula aos gangsters do futebol. Fazê-los engolir a arrogância e as ameaças. Fazê-los pagar e, não pagando, metê-los na cadeia… [eu sei que não há prisão por dívidas, mas seria bom haver uma lei de excepção, para esta máfia sinistra]. É assim que nascem as máfias e as camorras. Eles dizem que têm força e nós acatamos que eles a tenham. Corolário: passam mesmo a tê-la. É urgente acabar com o equívoco. Dizer-lhes que não os tememos. Que eles só existem, se nós deixarmos. Passarmos nós a ter a força.
 
Desde ontem, interessante colóquio sobre Participação Pública e Planeamento, no auditório da FLAD. O colóquio visa a “prática da democracia ambiental.” A minha dúvida é:mesmo aceitando que a prática da democracia ambiental é a melhor de que dispomos, será que este melhor é suficientemente bom? Se, como dizem os cientistas, se impõem soluções radicais, será a prática democrática produtora de radicalismo? Por outras palavras, estaremos nós “foutus”? Mas será que a saída da via democrática produz soluções melhores? Nesse caso, não haverá mesmo saída? Então, para què todos estes colóquios? Para morrermos lúcidos?
 
No regresso de Inglaterra, vim encontrar uma carta do Taborda de Vasconcelos, reagindo à minha Crónica dos Anos da Peste. Que foi, para ele, uma surpresa. Que os meus textos mais antigos já me mostravam adulto. Que não cresci: já apareci crescido. Acho que o problema é outro: fui crescendo, sem escrever. Quando peguei na caneta, já tinha lido e reflectido muito. Tinha escrito por dentro. A minha preocupação era compreender, não era escrever. Nunca me consumiu o furor de noircir du papier..
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula- Memórias V (1995-2015),Editora Opera Omnia, Outubro de 2015 , pp.93-95

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