" A América do Sul foi sempre terra de oleiros. Um continente de cântaros. Esses cântaros que cantam sempre os fez o povo. Fê-los com barro e com as suas mãos. Fê-los com argila e com as suas mãos. Fê-los de pedra e com as suas mãos. Fê-los de prata e com as suas mãos.
Sempre quis que se vissem na poesia as mãos do homem. Sempre desejei uma poesia com impressões digitais. Uma poesia de greda para que cante nela a água. Uma poesia de pão, para que todo o mundo a coma.
Só a poesia dos povos sustenta esta memória manual.
Enquanto os poetas se encerravam nos laboratórios, o povo continuou a cantar com o seu barro, a sua terra, os seus rios, os seus minerais. Produziu flores prodigiosas, epopeias surpreendentes, amassou folhetins, descreveu catástrofes. Celebrou os heróis, defendeu os seus direitos, coroou os santos, chorou os mortos.
E tudo isto fê-lo à pura mão. Essas mãos foram sempre desajeitadas e sábias. Foram cegas, mas quebraram as pedras. Foram pequenas , mas tiraram os peixes do mar. Foram obscuras, mas procuravam a luz.
Por isso esta poesia tem esse sortilégio do que foi criado com as coisas naturais. Esta poesia do povo tem esse timbre do que deve viver à intempérie, suportando a chuva, o sol, a neve e o vento. É poesia que deve passar de mão em mão. É poesia que se deve mover no ar como uma bandeira. Poesia que foi golpeada, que não tem a simetria grega dos rostos perfeitos. Tem cicatrizes no seu rosto alegre e amargo.
Não dou um louro a estes poetas do povo. São eles que me oferecem a força e inocência que deve informar toda a poesia. São eles que me fazem tocar a sua nobreza material, a sua superfície de couro, de folhas verdes, de alegria.
São eles , os poetas populares, os poetas obscuros, que me mostram a luz. "
( Prólogo para o livro A Lira Popular , editado em Santiago do Chile, a 6 de Março de 1966.)
Pablo Neruda, in Nasci para Nascer, Publicações Europa-América, 1978, pp. 117-118
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