O homem, esse desconhecido
por Eugénio Lisboa
« O título é o de um livro
célebre, da autoria do médico Alexis Carrel, que ganhou o Prémio Nobel de
medicina, por ter congeminado uma técnica que permitiu as transfusões de
sangue, numa altura em que ainda não havia anticoagulantes. O livro é
fascinante e admiravelmente escrito, embora possa estar hoje já um tanto
desactualizado. Mas não está desactualizado, na medida em que nos chama a
atenção para a extrema complexidade desta máquina que é o ser humano. Máquina
que muitos grandes escritores, da Antiguidade para cá, têm tentado, com êxito
desigual, decifrar. A grande literatura serve para nos ajudar a resolver
algumas das perplexidades e enigmas que o viver com os outros e com nós mesmos
nos põe. Quantas vezes os nossos amigos ou simples conhecidos nos surpreendem,
de repente, por um inesperado comportamento, que os revela, a uma luz nova e
nem sempre favorável. Quanto tempo passamos, às vezes, junto de alguém, sem
realmente o conhecermos. O ser humano é profundamente contraditório e isso pode
tornar o convívio com ele um terreno minado.
Toda a obra do nosso
escritor José Régio, especialmente os seus romances JOGO DA CABRA CEGA e A VELHA CASA, mas, de um modo geral, toda a
obra, são um dilacerante inventário dos mal-entendidos e dos obstáculos
traiçoeiros, que, na nossa vida, se opõem a um convívio fluente e transparente.
Mal-entendidos com os outros, com nós mesmos ou com um qualquer transcendente.
A grande literatura ilumina os lugares mais recônditos da personalidade humana
e, mostrando-nos a complexidade do ser humano, convida-nos a não sermos
levianos ou simplistas, na avaliação dos outros. Ou também de nós. Mesmo as
grandes figuras que admiramos – talvez, sobretudo, as grandes figuras – contêm
venenos perigosos na composição dos seus organismos. Um Tolstoi, que nos legou,
para sempre, as grandes construções romanescas, que são GUERRA E PAZ e ANA
KARENINA,e nos deu o exemplo de uma vida de criação cheia, revelou-se, como
homem, cheio de fragilidades e fanatismos perigosos. Este cristão e moralista
agressivo, pregador impetuoso de uma castidade assanhada, não hesitou em
exercer o seu droit de seigneur sobre, pelo menos, uma das suas escravas, o que
talvez esteja na origem do seu belo romance RESSURREIÇÃO. O mesmo Tolstoi, que,
na sua novela A SONATA A KREUTZER, propunha o exercício de uma alucinada
castidade absoluta e terminal, inevitavelmente despovoadora do planeta,
assaltava sexualmente a mulher, numa fúria insaciável de macho lascivo e
assíduo, ou seja, faz o que eu digo e não o que eu faço. Rodeado de discípulos
tão fanáticos como ele, transformou a vida da mulher num inferno, fazendo-a,
enquanto, de modo insaciável , a assediava sexualmente, copiar, para o editor,
a novela delirante na qual mandava para o inferno os não castos… O que estou a
dizer ou a querer dizer, é que este gigante da arte literária, provavelmente o
maior romancista do século XIX, podia também ser um dos mais perversos
fanáticos que a Rússia conheceu. Isto é, toda a avaliação simplista, não
poliédrica, de um ser humano, é necessariamente inepta, desfocada e injusta. O
mesmo poderíamos dizer de Dostoiewsky: este admirável escafandrista dos mares
infindáveis da alma humana, criador das figuras admiráveis de Aliocha Karamazov,
do Príncipe Mitchkin ou da Sonia do romance CRIME E CASTIGO, foi também o
criador das figuras demoníacas de Ivan Karamazov e do sinistro Stavroguine, da
novela A CONFISSÃO DE STAVROGUINE. Esta novela, aliás, era simplesmente um
capítulo que escrevera para o seu romance OS POSSESSOS, mas que não teve a
coragem de nele inserir. Tratar-se-ia da confissão de um crime terrível
cometido pelo próprio Dostoiewsky, que quis punir-se de o haver cometido,
confessando-o ao escritor que mais detestava, o grande Ivan Turguenev. O autor
de PAIS E FILHOS recebeu a confissão daquele horror, com irritante mutismo e
frieza, tanto mais ofuscantes, quanto mais Dostoiewsky se autoflagelava e se
lhe rojava aos pés. No fim, desesperado, com a falta de empatia de Turguenev, o
autor de AS NOITES BRANCAS, furioso, saiu, impetuosamente, batendo portas.
Conto estas coisas, apenas para mostrar como são contraditórios os seres
humanos e neles coabitam grandezas e misérias.
Uma época que nunca
deveremos esquecer é a do senador Joseph McCarthy e do terror instalado nos
meios intelectuais e artísticos americanos, com a sua caça às bruxas, o qual
via comunistas escondidos nos armários e debaixo das camas: bastava divergirem
do credo vigente ou terem convivido com amigos comunistas. Neste reino do
terror houve heróis (Arthur Miller, Kirk Douglas, Dalton Trumbo, Humphrey
Bogart, Lauren Bacall, Bette Davis, John Huston, entre outros) e vilãos
(Adolphe Menjou, John Wayne, Elia Kazan, Edward Dmytryk, Lee J. Cobb, Edward G.
Robinson, entre muitos outros ). Entre os vilãos, estavam estrelas de primeira
grandeza do cinema americano, como Elia Kazan e o actor Lee J. Cobb, que,
puxados ao limite da resistência humana, acabaram por ceder, tornando-se bufos.
Mas talvez valha a pena meditar se os mais vilãos são os que cederam à
chantagem ou os que a fizeram, criando um reino do terror conducente à
revelação das maiores fragilidades humanas. Dou só um exemplo: o actor Lee J.
Cobb, acusado de ser comunista, recusou-se a colaborar com os inquisidores,
durante dois anos. Recusou-se a dizer se era comunista e a nomear outros
comunistas. Foi perseguido de todas as maneiras e, por fim, admitiu ser
comunista e denunciou 20 camaradas. Mais tarde, tendo sido indagado sobre o seu
comportamento, respondeu assim: “Quando os poderes dos EUA se direcionam a uma
pessoa, em particular, isso pode ser aterrador. A Lista Negra é apenas o começo
– ficar privado de trabalho. O passaporte é confiscado. Isso não é muito
importante. Mas não sermos capazes de nos movimentarmos, sem sermos seguidos é
outra coisa. A partir de certo ponto, as ameaças implícitas tornam-se
explícitas e as pessoas sucumbem. A minha mulher sucumbiu e foi internada numa
instituição. O HUAC (House Un-American Activities Committee) fez um acordo
comigo. Eu estava completamente nas lonas. Não tinha dinheiro e não tinha como
pedi-lo emprestado. Tinha despesas com os meus filhos, (…) Precisava de
arranjar trabalho.” Quem acha que pode, atire a primeira pedra. Por mim,
prefiro orientar a minha artilharia na direcção de quem cria um universo, onde as
fraquezas humanas se revelem e reduzam, para todo o sempre, a autoestima do que
sucumbiu.
P. S. – Quem sugere, sob
anonimato, que alguma vez eu tenha feito avaliações de mérito, por critérios
ideologicamente enviesados, não passa de um vil caluniador ou de um ignorante.
Se de alguma coisa me orgulho é de sempre ter feito uma crítica saudavelmente
poliédrica e independente de ideologias. Visconti, um comunista, foi sempre um
dos grandes cineastas do século XX e uma ostensiva admiração minha. E nunca
escondi a minha admiração pela atitude que Marx teve em relação à liberdade dos
artistas. Mas os ideólogos duros e insensíveis sempre tiveram dificuldade em
entender estas coias. Até porque nunca leram Marx e apenas consultaram os seus
“substitutos”.»
Eugénio Lisboa, 28.02.2024
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