terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

FADO

FADO
por Eugénio Lisboa
"Publicado em 1941, o livro Fado, de José Régio, é o quarto da sua produção poética, iniciada em 1926 (e não 1925, como se tem dito), com Poemas de Deus e do Diabo.
Com poemas facilmente cantáveis ou apetecidamente recitáveis, Fado tornou-se um dos livros de poesia mais reeditados, entre nós, com sete edições publicadas, além desta que agora se lança no mercado. Alguns dos poemas nele inseridos (“Romance de Vila do Conde”, “Fado Português”, “Toada de Portalegre”, “Fado Alentejano”) são dos mais conhecidos e retidos no ouvido, mesmo de pessoas não demasiado dadas à leitura de poesia.
Poeta moderno, por muitas e variadas razões, José Régio nem por isso rejeitou as seduções e feitiços recomendados pelos fautores dos cancioneiros populares. Ele próprio o afirma, numa passagem do célebre posfácio que juntou (constantemente o reescrevendo e acrescentando) aos Poemas de Deus e do Diabo: «Pelo que toca à parte propriamente literária do Fado, bem me apraz declarar que mal ouvi ou li versos com algum entendimento, me senti seduzido pelos velhos rimances, toadas, estribilhos, cantigas ou quaisquer outras formas de poesia popular.» Isto nada tinha de conservador ou reaccionário. Ir beber às fontes e com elas aprender a “arte poética” essencial ao exercício do “métier” faz parte da educação de qualquer poeta que se preze, sem excepção dos poetas modernos de real categoria. No mesmo Posfácio, o próprio Régio o sublinhava: «E creio que sempre duas inclinações profundas coexistiram em mim, pelo que diz respeito à forma dos meus poemas: a que me arrastava para todos os moldes da versificação tradicional, de muito cedo estudada; e a que me fazia aventurar-me não só a novas combinações, mas até a verdadeiras inovações.» O conhecimento profundo das técnicas inerentes ao ofício nunca fez mal ao verdadeiro poeta: o seu desconhecimento é que até pode ser letal... O grande crítico Cyril Connolly não hesitava em afirmar o óbvio: «Um poeta (...) deve ser um especialista altamente consciente, em matéria de técnica.» É o domínio da técnica que ajuda o poema a captar o ouvido, o coração e a inteligência do ouvinte.
Por outro lado, tem havido alguma tendência leviana a se atribuir ao Fado (outros fazem-no à Chaga do Lado) o início das preocupações do poeta com a infelicidade dos outros: dos miseráveis, dos desprotegidos, dos pobres e doentes, das prostitutas, dos malfadados da sorte, dos desamparados, em geral. O próprio Régio – mas, mais do que ele, a evidência dos seus textos de criação – nega que tenha sido assim: «As tendências psíquicas e literárias aí [em Fado] afirmadas são tão naturais ao autor como quaisquer outras. Sempre os infelizes de qualquer categoria ou espécie me atraíram, direi melhor: me seduziram (...)»
Alguma crítica de cariz supostamente marxizante, que, infelizmente, se esqueceu de ir ver o que Marx, a este respeito, escreveu, disse e proclamou, lamenta, como a minha amiga Isabel Pires de Lima, que «estes quadros de miséria social [deixem] demasiado à vista uma intenção moral e religiosa previsível e redutora», não se dignificando nunca, por outro lado, «através dum qualquer sentimento de afirmação e revolta». Ora  – porque é artista e é como artista que se cumpre –  o que Régio realmente faz – e sempre na presença recomendou que se fizesseé não deixar demasiado indiscretamente à vista qualquer “intenção” religiosa, moral ou social. E tão grave, do ponto de vista artístico, é revelar de modo demasiado óbvio, uma intenção religiosa como uma intenção social ou política. Os patrões do marxismo, porque eram inteligentes e amavam a arte, sempre o disseram e não foram macios para os romancistas ou poetas que indiscretamente embandeiraram em arco com soluções ineptas para problemas complexos, vendendo “amanhãs que cantam” ao preço da uva mijona. O descarado desvelar, dentro da obra, de “boas intenções” morais, religiosas, sociais ou políticas é sempre um grave defeito artístico, ou, se preferirem, um calamitoso “defeito de fabrico” – contra o qual eloquentemente se ergueram Régio, Marx e outros, marxistas ou não, que realmente amavam a arte (Lenine, por exemplo, que, provocantemente ousava preferir o burguês Pushkine ao bravo progressista Maiakowsky...) Curiosamente, Régio e Marx usam quase as mesmas palavras (e o arranjo delas), para vituperarem os que são de opinião de que, na obra de arte, se deve abertamente (ostensivamente) indicar de que lado está o direito e qual a solução para os problemas, com incitação clara à revolta na direcção certa. Ora isso faz-se em panfletos , em manifestações, mas não necessariamente (e, menos ainda, obrigatoriamente) numa balada, numa toada, num soneto ou num rimance... E quanto à revolta...é claro que os sentimentos de indignação e revolta estão ardentemente implícitos nos belos poemas, que, surda mas eloquentemente, encolerizam as páginas deste soberbo Fado."
Eugénio Lisboa, 2013

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