"Nasci com um sorriso a aflorar nos lábios. A minha mãe nunca se cansava
de o referir. Sorriso que passou a ser um traço identificativo e talvez o mais sedutor da minha
personalidade. Mantive-o ao longo da vida. Era um sorriso único, realçava a
minha mãe. Cativei-a infindamente. Ela tinha, porém, um sorriso maior do que o
meu. Era a luz que sempre se acendeu desde o meu primeiro dia. Iluminava tudo à
sua volta. E que falta me faz essa luz.( As mães não deveriam partir.
Deixar-nos órfãos.)
A azáfama que causou o meu nascimento obrigou à requisição de familiares. A minha
avó espanhola, andaluza de Sevilha, deixou Lisboa e rumou ao Norte. Era a minha
avó materna. Recém viúva de um gentleman alemão.
Efusiva e decidida, passou a comandar, com mão forte, os empregados da casa e
os netos. Isolou a minha mãe e com ela ,lá fui eu, também,
para os aposentos mais recônditos da casa. Pretendia resguardar-nos da agitação
de uma casa habitada por adultos e por crianças e dos intensos ruídos que
campeavam pela rua devido à festa da cidade. Nos primeiros dias, a minha mãe
aceitou as regras impostas com algum agrado e também pela conformidade que
tinham com os preceitos, então, usuais e seguidos pelas parturientes. Os partos eram feitos em casa. No entanto, havia uma terapia definida para uma boa
convalescença que passava pelo repouso e por uma alimentação específica. À minha mãe, apesar
de ter uma mãe bem esclarecida e aberta, foi-lhe totalmente aplicado esse
tratamento. Ao fim de meia dúzia de dias,
o isolamento tornou-se insuportável. Era uma fatalidade a que minha mãe não
queria entregar-se. De rebelião em
rebelião, decidida e doce, ora filha
dedicada , ora mãe independente, conseguiu amaciar a relutância da minha avó e mudar-se para o quarto que lhe
pertencia.
O calor e a confusão da casa em nada me perturbavam. Dormia feliz e
cândida como compete a um recém- nascido. Estava na minha casa , no lugar que
me haviam reservado. O quarto dos meus pais. Enorme, de tecto alto, mas
acolhedor e confortável. Vivi nele os primeiros meses de vida até completar um ano. Só lá voltei a dormir,
quando a Escarlatina me tomou e foram obrigados a isolar-me por causa do
contágio. Tinha eu cinco anos.
A minha avó era uma mulher lindíssima . De forte personalidade marcava a
sua presença onde quer que estivesse. A minha mãe era a sua única filha.
Regozijava-se por estar numa casa onde já existiam três crianças, ou seja, três
netos à sua guarda. Mulher de cultura ,
viajada por uma Europa diferente deste Portugal de então, não se coibia de
adoptar os “ bons” costumes portugueses quando lhe serviam. A organização que
impôs àquela casa, nesse tempo do meu nascimento , revolucionou-a quer pela novidade , quer pela emergência de
procedimentos antigos e bem portugueses. Enquanto exigia aos empregados, um
rigor total no desempenho das respectivas funções, oferecia-lhes vestuário mais
moderno e aumentos nas remunerações. À cozinheira alterou-lhe a programação. O
menu teria de ser actualizado. Manteria o que de bom e saudável existia nele e
introduziu novos pratos que fizeram dores de cabeça à pobre cozinheira. O meu
pai , um genuíno nortenho, nunca aceitou estas alterações. Um bom cardápio era
constituído apenas por pratos da cozinha tradicional portuguesa e
predominantemente nortenha. As luzes vermelhas começaram a acender . Do intermitente ao permanente foi um salto
curto. Até que, após uma quarentena de
dias interminável , a minha avó , senhora inteligente e perspicaz, fez as malas
e partiu. A casa readquiriu a sua
forma original. A minha mãe retomou as rédeas e tudo prosseguiu o seu
curso próprio.
Foi, nessa altura, que chegou a Fernanda. A minha
mãe precisava de alguém que ajudasse nos cuidados com as crianças.
A Fernanda foi o pilar de uma infância protegida e
acarinhada. Jovem, sorridente e infindamente meiga, ela conquistou-nos de
imediato. A casa passou a ter mais uma residente indispensável: a nossa
governanta, a imprevista preceptora, a suposta irmã mais velha a quem queríamos
de olhos fechados. Nem ao meu irmão devotávamos tanto carinho. Ele era o
primeiro filho desta grande prole
familiar. Excedia-nos em mais de uma década. Andava sempre lá por cima, no topo,
enquanto nós , crianças ruidosas, apenas
tentávamos ser crianças longe de tudo que
nos permitisse confirmar a rejeição que evidenciava pelas nossas brincadeiras. Com
ele, o temor superava qualquer terna tentativa de aproximação. Mas descobrimos
a Fernanda. E ao ficar com a Fernanda a nossa infância teve ainda mais fulgor.
Recordo-a intensamente. Alta. Loira com uns olhos
grandes , do tamanho do mundo e com a
cor do céu num dia luminoso. Os cabelos entrançados, longos e sedosos. De pele
muito branca, era esbelta mas forte. Aquela solidez que têm as pessoas do
campo. Não de qualquer campo. Dos campos que eram lavrados por gente simples, honrada
e de coração aberto. Daqueles que compõem o norte deste país. País que se
esqueceu ( agora) de que a liberdade se construiu ali também, com ensaios seculares de preparação.
Tocá-la era uma bênção. Quando nos elevava, a felicidade soltava-se. Ria-se ela e
exultávamos nós. Um solfejo de cristalinas gargalhadas que não a cansavam,
apesar da exigente e constante fila para a repetição do gesto. Que belos eram
os dias com a Fernanda. A minha mãe tinha nela a outra que a completava. Descoberta
a Fernanda, os dias, os meses, os anos voavam em harmoniosa sucessão.
E foi assim que cheguei aos quatro anos. Data
memorável, porque pela primeira vez tive consciência de um nascimento. A minha
mãe preparara-nos para a vinda de um outro irmão ou irmã. Sim. Um menino ou uma
menina? Naquele tempo, ninguém sabia o sexo da criança antes do nascimento. O
dia estava a aproximar-se, dizia-nos a Fernanda quando a data estava em
acelerado processo decrescente. Os dedos das mãos ajudavam-nos a eliminar os
dias. Sem ter muito a consciência do que era o tempo e ainda menos de todo o
processo de parto, rejubilava sempre que a contagem diminuía.
Naquele dia, a Fernanda fechou-se connosco no
quarto dos brinquedos. Era no tempo das cerejas. Brincáramos pela quinta
durante a manhã. As cerejeiras olhavam-nos em apetitosos cumprimentos. Havia
cestos com cerejas de um vermelho tão
intenso que fugir-lhes era quase criminoso. Creio que começou muito cedo esta minha
paixão por aquele fruto. Os subtis tons de carmim eram um apelo para a visão e um
perfume para o olfacto. Acrescia a ingénua vaidade infantil de tentar converter um galho de cerejas em brinco.
Habilidade e gozo que se estabeleceram em desafio rotineiro. As cerejas
deram-me dores intensas de overdose.
Ficou-me quase como uma doce compulsão que prezo em manter.
Ora, voltemos ao dia do parto. O quarto dos
brinquedos era uma divisão espaçosa, de grande área, uma antiga sala, que fora
convertida para nos albergar em tempo de frio e de chuva. Era aí que passávamos
inúmeros momentos de brincadeira. Os
brinquedos estavam arrumados em prateleiras e o chão coberto por uma enorme
carpete. Num armário, numerosos livros compunham o espólio.
O quarto de brinquedos situava-se na zona próxima
da cozinha e da copa, bastante afastado dos quartos. Longe da zona onde o parto
ia acontecer. Qualquer ruído era abafado pelos sons mais próximos. E alguns,
quase em surdina, aportavam ali, vindos
da cozinha . O alegre cantarolar da cozinheira, os sons roucos das panelas, o barulho concertado dos
utensílios culinários, a risada de quem por
lá entrava e os apelos de um melodioso vozear
vindo do campo. Todos se congregavam num ambiente que dava à casa a sua
personalidade viva. Era a minha casa. Uma casa que me amava e que , todos os
dias , me surpreendia. Como era feliz nela.
Estávamos nós em grande brincadeira, com a
Fernanda a orientar e a determinar o
ritmo apropriado, quando o meu pai apareceu de sorriso aberto. O meu irmão, um
menino, acabara de nascer. Podíamos ir conhecê-lo. Dóceis e silenciosos,
entrámos no quarto dos meus pais. A minha mãe sorria-nos. Estava sentada na cama,
com um minúsculo menino ao colo. Embrulhado em mantas brancas de pura lã, mal
se via o reduzido rosto. Estava a dormir e nem sequer deu por nós. Em bicos de
pé, tentei esquadrinhar bem aquela pequena criatura à procura de um aceno, de
um olhar que denotasse a nossa presença. Mas nada. O meu irmão viera para
dormir. Não estava interessado em
conhecer-nos ou apresentar-se.
Quando a minha irmã mais nova nasceu , eu tinha
apenas um ano. Não me preparara para o seu nascimento. Recordo que, de repente,
é esse o termo exacto, havia mais alguém em casa. Um ser que não largava a
minha mãe e merecia dormir no berço que fora meu. Por essa altura, a minha mãe já deixara de me
amamentar e eu passara a dormir no
quarto das raparigas (das meninas), onde estava a minha irmã mais velha. Nascer para mim, nessa idade, era qualquer coisa estranhíssima. Nem sequer
tivera ainda tempo de entender esse processo na natureza.
As minhas memórias desse tempo não existem. Creio
que absorvi algumas recordações por tanto terem sido reproduzidas por outros ao
longo da minha vida. Apropriamo-nos delas com se nossas fossem. “A melhor parte
da nossa memória está deste modo fora de nós”, dizia Proust.
A
memória de um nascimento começa para mim aos quatro anos, com o nascimento do meu
irmão. Com o tempo e no decurso pacífico dos dias, todos fomos envolvidos por este
novo irmão. Era o menino de todos nós
que a mãe, com imenso desvelo, partilhava para que todos nos sentíssemos
importantes." Maria José Vieira de Sousa, in " O livro que já escrevi"
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