Por Eugénio Lisboa
«Sebastião da Gama é um dos poucos escritores — em qualquer língua — do qual se pode dizer, sem hesitar, que o homem que fez a obra coincide, ponto por ponto, com o homem que a obra faz supor. Quando pensamos nele — no meu caso, a partir dos inúmeros testemunhos dos que com ele conviveram — vem primeiro, ao nosso encontro, não a admiração que temos pelo poeta e pelo diarista, mas antes, o profundo afecto que sentimos pelo homem. Quem o conheceu — e não foi, infelizmente, o meu caso — assim reagiu. Nas cartas que José Régio lhe dirigiu, verifica-se isto mesmo. Ainda antes de conhecer, com qualquer profundidade, os seus livros, já o poeta dos Poemas de Deus e do Diabo se rendia, comovidamente, à sedutora candura e sinceridade do homem que era Sebastião da Gama. Numa carta que lhe dirigiu, em 11 de Maio de 1950, José Régio dizia-lhe o seguinte: "Com profundo prazer me detenho naquelas notas íntimas, naqueles versos densos de sugestões, através dos quais a autenticidade de um Poeta se revela. Se, porém, tivesse eu dúvidas — que nunca tive — sobre a autenticidade do seu temperamento poético, bastaria conhecê-lo pessoalmente para tais dúvidas se me desfazerem. Tive, há pouco tempo, ocasião de o conhecer um pouco melhor; e, embora não possa ainda dizer que o conheço, (ou não possamos nós dizer que nos conhecemos) o certo é que senti uma espécie de necessidade de lhe vir dizer isto... Desculpe a maneira um pouco atabalhoada com que lho digo." E, noutra carta escrita pouco menos de um ano depois (8 de Abril de 1951), reforça a forte impressão de sinceridade que, no poeta da Arrábida, colhera: "Quanto à sua sinceridade," nota ele, já no final da carta," — de modo nenhum duvido dela. Basta vê-lo, meu Amigo, e ouvi-lo, para se ter a certeza de tal sinceridade. Eis o que é um Poeta!' — tenho eu pensado só de ouvi-lo." Estas palavras do poeta de As Encruzilhadas de Deus, assumem um valor muito especial, quando se tem presente a proverbial cautela com que ele se aproximava dos homens e das suas obras. Mesmo quando o impressionavam favoravelmente, Régio jogava sempre à defesa. Mas, no caso de Sebastião da Gama, a sinceridade genuína e singularmente atraente do autor de Serra-Mãe impôs-se-lhe, desde o primeiro momento. Pouco mais de um ano após o prematuro falecimento deste, José Régio dedicou-lhe, no número duplo 16/17 da revista Távola Redonda, um comovido testemunho, de que não resisto, mais uma vez, a transcrever uma passagem: "Quando pude conhecer pessoalmente Sebastião da Gama", escreveu Régio, "pensei, encantado: ‘Louvado seja Deus! Ora aqui está um Poeta! um novo Poeta!' E essa primeira e rejuvenescedora impressão, nunca os meus encontros seguintes com Sebastião da Gama a desmentiram. Só a confirmaram. De cada vez que me encontrava com ele, voltava a pensar: 'Ora aqui está um Poeta! um verdadeiro Poeta!' Dizer que o pensava com ternura, gratidão e respeito — é dizer pouco. Donde tal e tão viva impressão? Nada ouvia a Sebastião da Gama que já não tivesse ouvido, ou não pudesse vir a ouvir, a vários outros. É que não tanto das suas palavras como de todo ele, vinha essa impressão de juvenilidade e frescura, gentileza e comunicabilidade, entusiasmo e pureza, que me fazia pensar: ‘Não há dúvida! Eis um verdadeiro Poeta'. E de cada vez me achava eu como animado, e agradecido, pelo simples facto de existir, nestes velhos e demasiado sabidos tempos de hoje, um rapaz assim tão naturalmente protegido pela sublime ingenuidade poética de sempre."
Estes textos que, quase abusadoramente, citei, tiveram um projecto: recortar a imagem de um ser humano dotado de dons poéticos, no melhor sentido desta expressão: de um ser humano dotado de frescura, de sinceridade, de pureza, de uma quase mágica comunhão com tudo o que vive, de um respeito minucioso e infinito para com a natureza, de uma espécie de afecto muito simples mas, ao mesmo tempo, muito transcendente. O grande romancista inglês E. M. Forster, referindo-se ao romance — mas podendo nós, sem perigo, extrapolá-lo para a poesia ou para qualquer forma de arte — dizia que o teste último, para ela, será o nosso afecto por ela, como o é para os nossos amigos. A poesia de Sebastião da Gama — admira-se, mas, o que é ainda mais importante, fica-se profundamente amigo dela. E ficamos amigos dela porque ela é, por sua vez, genuinamente amiga de tudo quanto, na vida, importa. O poeta americano Longfellow observou, penetrantemente, que "o verdadeiro poeta é um homem amistoso. Acolhe, nos seus braços, mesmo as coisas frias e inanimadas e regozija-se com o seu próprio calor." É isto mesmo que também parece dizer Sebastião da Gama, na sua
admirável página do seu Diário, com data de 9 de Março de
1949: "O poeta beija tudo, graças a Deus... E aprende com as coisas a sua
lição de sinceridade... E diz assim: ‘É preciso saber olhar...!’ E pode ser, em
qualquer idade, ingénuo como as crianças, entusiasta como os adolescentes e
profundo, como os homens feitos... E levanta uma pedra escura à espera para
mostrar uma flor que está por detrás…
E perde tempo (ganha tempo) a namorar uma ovelha... E comove-se com coisas de nada: um pássaro que canta, uma mulher bonita que passou, uma menina que lhe sorriu, um pai que olhou desvanecido para o filho pequenino, um bocadinho de sol depois de um dia chuvoso... E acha que tudo é importante..." Nesta comovente passagem se condensa toda uma arte poética que se constrói a partir do uso meticuloso do olhar: olhar para a natureza toda, sem nada desleixar. É o que o Poeta considera ser olhar "o mundo através da janela da Poesia". Olhá-lo sem vergonha, sem preconceitos absurdos. Por isso, observa, com intrépida justeza: "A gente tem vergonha de beijar tudo, de amar as flores, de se enternecer com os animais, de dar um passeio. Se beija uma árvore, é parvo; se traz uma flor na mão, é maricas, se se enternece, é fraco; se acaricia uma menina, põe nessa carícia sexo; se vai a qualquer parte para passear e ver o mundo, faz constar que foi em viagem de estudo ou viagem de negócios. Temos vergonha de ser sinceros, de que nos creiam parvos ou maricas, ou fracos ou lúbricos ou estroinas. E então perdemos o melhor da nossa vida a ludibriar os outros e a insultar as nossas intenções mais belas e generosas. Ó Portugueses, é tempo de torcer o pescoço ao respeito humano. Olhai que nós somos bons e talvez seja verdade que somos Poetas — e isso não deve ser desprezado, mas antes manifestado. Começai a ser sinceros, deixai de ser irónicos, e vereis como tudo corre melhor e a vida tem outro sabor!"
E perde tempo (ganha tempo) a namorar uma ovelha... E comove-se com coisas de nada: um pássaro que canta, uma mulher bonita que passou, uma menina que lhe sorriu, um pai que olhou desvanecido para o filho pequenino, um bocadinho de sol depois de um dia chuvoso... E acha que tudo é importante..." Nesta comovente passagem se condensa toda uma arte poética que se constrói a partir do uso meticuloso do olhar: olhar para a natureza toda, sem nada desleixar. É o que o Poeta considera ser olhar "o mundo através da janela da Poesia". Olhá-lo sem vergonha, sem preconceitos absurdos. Por isso, observa, com intrépida justeza: "A gente tem vergonha de beijar tudo, de amar as flores, de se enternecer com os animais, de dar um passeio. Se beija uma árvore, é parvo; se traz uma flor na mão, é maricas, se se enternece, é fraco; se acaricia uma menina, põe nessa carícia sexo; se vai a qualquer parte para passear e ver o mundo, faz constar que foi em viagem de estudo ou viagem de negócios. Temos vergonha de ser sinceros, de que nos creiam parvos ou maricas, ou fracos ou lúbricos ou estroinas. E então perdemos o melhor da nossa vida a ludibriar os outros e a insultar as nossas intenções mais belas e generosas. Ó Portugueses, é tempo de torcer o pescoço ao respeito humano. Olhai que nós somos bons e talvez seja verdade que somos Poetas — e isso não deve ser desprezado, mas antes manifestado. Começai a ser sinceros, deixai de ser irónicos, e vereis como tudo corre melhor e a vida tem outro sabor!"
Sebastião da Gama |
A arte poética de Sebastião da Gama consiste, pois, essencialmente nisto: olhar intrepidamente, sem vergonha, sem preconceitos, sem tabus, para tudo o que nos rodeia e nos seduz. O exercício de uma atenção minuciosa e destemida é urna promessa de grandes frutos. Quando, por debaixo de uma pedra escura, o Poeta encontra uma flor, ele sabe bem que não é apenas uma flor, porque uma flor não é nunca "apenas uma flor". A flor, como a pedra, como tudo, é o produto de uma incansável e misteriosa construção milenar: ou, como dizia o grande poeta inglês William Blake, "criar uma pequena flor é um labor que leva séculos." Sebastião da Gama sente, como poucos, a valia da natureza; o trabalho obstinado e quase clandestino que está por detrás de cada pedaço da natureza que o deslumbra. Por isso, gosta de percorrê-la, apesar de doente e prometido à morte, e não teme beijá-la: “Não tinha pés: tinha passos; / não tinha boca: era beijos; / não tinha voz: era como / se o folhado e a maresia / se tivessem combinado / para cantar ‘Ave, Maria...’”
A morte foi, desde cedo, uma presença próxima. O autor de Campo Aberto sabia que a sua vida seria curta. Havia, pois, que vivê-la intensamente, compensando, com intensidade, a curta duração; e havia, também, que torná-la intensamente produtiva, profissional e criativamente. Viver a vida, fruí-la, com intensidade, abrangência e minúcia — já vimos que o fez, bebendo o mundo a largos tragos; tornar a vida profissionalmente produtiva, como aluno e, depois, como professor aplicado, apesar de doente, todos os testemunhos confirmam, comovidamente, que assim fez. Mas limitar-me-ei a transcrever aqui uma curta passagem do belo testemunho que, no referido número da Távola Redonda, publicou o Professor Hernâni Cidade, um ano depois da morte do Poeta: "Como se empenhava ele" pergunta Cidade, "e com êxito notável, em ser o aluno cumpridor e esforçado, que não recuava perante o mais árido dos estudos, e de certa altura do curso em diante, com a superioridade expressa na sua alta nota de licenciatura? Com a mesma altíssima noção do dever fez o seu estágio para as Escolas Técnicas e com exemplaríssima dedicação, simpatia comunicativa e aplaudida eficiência exerceu o ensino oficial em Estremoz, onde o seu nome persiste aureolado da mais viva e comovida saudade."
Joana e Sebastião, no Portinho da Arrábida, na década de 1940 |
No campo da criação poética, a aproximação foi semelhante. David Mourão-Ferreira, no belo texto que dedicou à memória do poeta seu amigo, após a sua morte, cita uma passagem de uma carta que dele recebera, na qual dizia: "Sabes por que não perco tempo em cafés e em outras coisas de que o café é uma metáfora? Porque quero deixar feita a minha obra. Poder dizer à Morte: ‘Já vens tarde.' Porque ela é irónica e vem no meio da nossa distracção." E o comentário de David a estas palavras diz o seguinte: "São de Novembro de 1947 estas palavras. Três anos depois, naquele poema Alegoria, [...] tem ele estes versos, tão dramaticamente próximos dos termos da carta: 'Dona Cigarra faz serão. / Como há-de ela dormir, se a vida é curta? / _ : Cigarra que se preza, quando morre / não deve estar a meio da canção'. Dessa carta a este poema há a distância que vai de uma confissão pessoal a uma obra de arte. Não que não seja profundamente bela a expressão literária desse trecho. Mas a obra de arte, mais que pela beleza da forma, caracteriza-se, segundo creio, pela capacidade de universalizar as preocupações mais pessoais e mais íntimas. Pelo trânsito alegórico daquela cigarra, o Sebastião da Gama tornava de toda a gente uma preocupação que era tão sua."
Sebastião da Gama |
Sebastião da Gama, na sua curta vida profissional e criativa, viveu tanto a vida, precisamente porque tinha a morte ali tão perto, à sua espera. Não cedamos, porém, à tentação romântica de atribuir à sua doença e ao seu sofrimento a origem e a causa da sua obra. Pelo contrário, o seu talento fez-se ouvir, apesar e não por causa da sua doença. Foi a combinação soberba do seu talento e do seu forte carácter que lhe permitiu, a despeito das contrariedades da doença e da morte prematura, produzir uma obra com muito de notável, ainda que curta e, sob alguns aspectos, imperfeita. Ele deverá, talvez, ao seu infortúnio, um certo teor de gravidade que perturba o alado e o gracioso de tantos poemas. Isto mesmo foi assinalado por Régio, no seu comovido testemunho, quando diz: "Não obstante, compreendo agora como certa gravidade da obra de Sebastião da Gama — essa profunda gravidade que em vários seus poemas tão admiravelmente ombreia com a graça, a frescura, a juvenilidade, até a malícia, quer dos mesmos quer dos poemas vizinhos — era ganhada na convivência da Morte; essa morte à qual, num dos mais tocantes e complexos gritos do nosso lirismo, ele pede a Deus o poupe, por ainda se não julgar digno dela! Só tal convivência, que é a dos que vão morrer cedo, ou vivem mortos para as superfluidades da vida corrente, - ainda que tão vivos, como Sebastião da Gama, para todas as amabilidades do Momento eterno — só tal convivência ensina coisas que também só a verdadeira Poesia comunica." Claro que Régio tem razão, se atendermos aos factos e às circunstâncias. Para o caso, terá sido a presença próxima da morte que lhe alimentou o teor de gravidade dos poemas. Mas se não fosse a Morte e ele tivesse vivido a extensão normal de uma vida, quem pode dizer que outros motivos lhe não teriam também activado um natural pendor para graves cogitações? A sua organização psico-fisiológica e o seu talento estariam lá, devidamente apetrechados e vocacionados para o exercício de aprofundamento de uma gravitas, de que a morte não é proprietária única. Não lhe concedamos, pois, mais crédito do que aquele que lhe é devido. Sobretudo, não retiremos mérito ao inconfundível talento do autor de Cabo da Boa Esperança, para, imerecidamente, o darmos àquela que lhe roubou a vida. Não foi por a mãe lhe ter dado um padrasto antipático que Baudelaire escreveu As Flores do Mal: escreveu-as porque tinha génio e apesar da antipatia do padrasto.
Vou terminar. Como todas as vidas, mas, sobretudo, como todas as vidas um pouco singulares, a vida de Sebastião da Gama é muito capaz de deixar muitas perguntas por responder. Uma delas — provavelmente estúpida, mas são as perguntas estúpidas que têm feito andar o mundo — uma delas até pode ser esta: "O que faz que se possa nascer com tanto talento e, tão prematuramente, ferido de morte?" Não sei responder, confesso. Mas sempre vos deixo, aqui, a propósito, e para acabar, estas palavras do dramaturgo americano Tennesse Williams: "A vida é uma pergunta sem resposta, mas seja-nos permitido acreditar na dignidade e na importância da pergunta." »Texto da palestra sobre Sebastião da Gama, proferida por Eugénio Lisboa, em 16 de Novembro de 2012, na Biblioteca Municipal de Setúbal.
Porque será que eu ando ainda,
que eu ando sempre à procura
de aquela Estrela
que já tão bem alcancei
que a trago diluída no meu sangue?...
Sebastião da Gama, in Serra-Mãe, 1945, Edições Ática, Lisboa
Imagem
Deixem-me esta imagem, mesmo quando eu dormir,
[mesmo quando eu morrer.
Esta imagem de cores bailando, bailarinas falsas, danças
[verdadeiras
de luz saudável
De coisas só muito boas, como nem nos sonhos.
Porque eu não estou sonhando. esta imagem aconteceu
[- me eram seis horas da tarde
e eu tinha os olhos abertos
e os pássaros cantavam, nítidos, no ar.
Vou levá-la comigo,
bem no fundo dos meus olhos que é como quem diz bem
[no fundo da minha alma,
a todos os sítios a que for.
Pra olhá-la quando estiver triste
e quando estiver contente
e quando não estiver contente nem triste.
Esta imagem aconteceu-me eram seis horas da tarde...
o Sol estava alegre, o Mar alegre.
E eu que não estava alegre nem triste
fiquei alegre sem saber porquê...
Sebastião da Gama , Itinerário Paralelo, 1967,Edições Ática, Lisboa
Arrábida,
Serra de um poeta " é um filme Documentário que entrou na competição do
concurso Arrábida Curtas & Doc's de 2011.
O filme pretende traduzir em imagens algumas das páginas do livro "Serra-Mãe" de Sebastião da Gama
, inspiradas na beleza da serra da Arrábida , para onde o poeta foi viver, sob indicação médica, por causa da tuberculose que lhe fora diagnosticada..
Sebastião Artur Cardoso
da Gama nasceu a 10 de Abril de 1924, em Vila Nogueira de Azeitão, distrito de Setúbal.
Licenciado em Filologia Românica, foi professor, poeta, colaborador das
revistas Árvore e Távola Redonda. Morreu aos 28 anos, a 7 de Fevereiro de
1952.
Estreou-se com Serra
Mãe, em 1945. Publicou ainda Loas a Nossa Senhora da
Arrábida (1946, em colaboração com Miguel Caleiro), Cabo da Boa
Esperança (1947) e Campo Aberto (1951). Após a sua
morte, foram editados Pelo Sonho é que Vamos (1953), Diário (1958), Itinerário
Paralelo (1967), O Segredo é Amar (1969) e Cartas
I (1994).
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