Fazer 30
anos
“QUATRO
pessoas, num mesmo dia, me dizem que vão fazer 30 anos. E me anunciam isto com
uma certa gravidade. Nenhuma está dizendo: vou tomar um sorvete na esquina, ou:
vou ali comprar um jornal. Na verdade estão proclamando: vou fazer 30 anos e,
por favor, prestem atenção, quero cumplicidade, porque estou no limiar de
alguma coisa grave.
Antes dos 30
as coisas são diferentes. Claro que há algumas datas significativas, mas fazer
7, 14, 18 ou 21 é ir numa escalada montanha acima, enquanto fazer 30 anos é
chegar no primeiro grande patamar de onde se pode mais agudamente descortinar.
Fazer 40, 50
ou 60 é um outro ritual, uma outra crónica, e um dia eu chego lá. Mas fazer 30
anos é mais que um rito de passagem, é um rito de iniciação, um acto realmente
inaugural. Talvez haja quem faça 30 anos aos 25, outros aos 45, e alguns,
nunca. Sei que tem gente que não fará jamais 30 anos. Não há como obrigá-los.
Não sabem o que perdem os que não querem celebrar os 30 anos. Fazer 30 anos é
coisa fina, é começar a provar do néctar dos deuses e descobrir que sabor tem a
eternidade. O paladar, o tacto, o olfacto, a visão e todos os sentidos estão
começando a tirar prazeres indizíveis das coisas. Fazer 30 anos, bem poderia
dizer Clarice Lispector, é cair em área sagrada.
Até aos 30, me
dizia um amigo, a gente vai emitindo promissórias. A partir daí é hora de
começar a pagar. Mas também se poderia dizer: até essa idade fez-se o
aprendizado básico. Cumpriu-se o longo ciclo escolar, que parecia interminável,
já se foi do primário ao doutorado. A profissão já deve ter sido escolhida. Já
se teve a primeira mesa de trabalho, escritório ou negócio. Já se casou a
primeira vez, já se teve o primeiro filho. A vida já se inaugurou em fraldas,
fotos, festas, viagens, todo tipo de viagens, até das drogas já retornou quem
tinha que retornar.
Quando alguém
faz 30 anos, não creiam que seja uma coisa fácil. Não é simplesmente, como num
jogo de amarelinha, pular da casa dos 29 para a dos 30 saltitantemente. Fazer
30 anos é cair numa epifania. Fazer 30 anos é como ir à Europa pela primeira
vez. Fazer 30 anos é como o mineiro vê pela primeira vez o mar.
Um dia eu fiz
30 anos. Estava ali no estrangeiro, estranho em toda a estranheza do ser, à
beira-mar, na Califórnia. Era um homem e seus trinta anos. Mais que isto: um
homem e seus trinta amos. Um homem e seus trinta corpos, como os anéis de um
tronco, cheio de eus e nós, arborizado, arborizando, ao sol e a sós.
Na verdade,
fazer 30 anos não é para qualquer um. Fazer 30 anos é, de repente, descobrir-se
no tempo. Antes, vive-se no espaço. Viver no espaço é mais fácil e deslizante.
É mais corporal e objectivo. Pode-se patinar e esquiar amplamente.
Mas fazer 30
anos é como sair do espaço e penetrar no tempo. E penetrar no tempo é mister de
grande responsabilidade. É descobrir outra dimensão além dos dedos da mão. É
como se algo mais denso se tivesse criado sob a couraça da casca. Algo, no
entanto, mais ténue que uma membrana. Algo como um centro, às vezes móvel, é
verdade, mas um centro de dor colorido. Algo mais que uma nebulosa, algo assim
pulsante que se entreabrisse em sementes.
Aos 30 já se
aprendeu os limites da ilha, já se sabe de onde sopram os tufões e, como o
náufrago que se salva, é hora de se autocartografar. Já se sabe que um tempo em
nós destila, que no tempo nos deslocamos, que no tempo a gente se dilui e se dilema.
Fazer 30 anos é como uma pedra que já não precisa exibir preciosidade, porque
já não cabe em preços. É como a ave que canta, não para se denunciar, senão
para amanhecer.
Fazer 30 anos
é passar da recta à curva. Fazer 30 anos é passar da quantidade à qualidade.
Fazer 30 anos é passar do espaço ao tempo. É quando se operam maravilhas como a
um cego em Jericó
Fazer 30 anos
é mais do que chegar ao primeiro grande patamar. É mais que poder olhar para
trás. Chegar aos 30 é hora de se abismar. Por isto é necessário ter asas, e
sobre o abismo voar. “
Affonso Romano de Sant'Anna, nascido em Minas Gerais, é um marco na literatura brasileira, tendo publicado mais de 40 livros e já tendo recebido vários prémios, inclusive o Prémio da União Brasileira dos Escritores. Desde os anos 60, tem influenciado e participado em movimentos que transformaram a poesia brasileira, além de fazer parte dos movimentos políticos e sociais do país. Nos tempos de ditadura militar quando as expressões artísticas eram fortemente reprimidas pela censura, publicou audaciosas obras nos mais importantes jornais do país, em páginas de politica. Muitos poemas do autor foram transformados em posters, placas e cartazes e difundidos aos milhares como forma de resistência."
Sem comentários:
Enviar um comentário