Conto
O Embrulho
Por
Ronaldo Costa Fernandes*
"Estou
na esquina. Se tivesse de escolher um homem honesto para cumprir esta missão,
eu me escolheria. Tenho trinta anos, dois ternos, um par de sapatos e minha
honestidade. Meu pai não deixou nenhum bem ao morrer. Ele me dizia: Filho,
minha herança será a honestidade. Com a honestidade, reconheço, não se compra
apartamento ou carro novo, mas tem-se a consciência tranquila e isso não tem
preço. Ele repetia: Isso não tem preço.
Estou aqui há
mais de três horas. Faz um calor dos diabos. O sol não dá bola pra honestidade.
Tanto faz ser honesto ou ladrão, se sua da mesma maneira. Não sei o rosto do
homem que recolherá o pacote. O sigilo é alma da missão. Pode ser qualquer um:
a velha que passa, a mocinha de jeans, o velho de boné, o militar de farda
entre os civis, o rapaz da prancha de surf.
Aprendi a
controlar os instintos. Quase não me movo. Tomo ordinariamente pouco líquido.
Um homem, para cumprir a missão, não pode ser vencido pelas partes baixas do
corpo. Posso passar um dia sem urinar. O mesmo acontece com a comida. Preciso
de um mínimo para me manter em pé. Até o sono. Um homem que dorme muito não
pode cumprir a missão.
Disciplinei
meu corpo. Um homem honesto precisa disciplinar o corpo. Tenho um orgulho que
não reparto com ninguém. Se contasse, diriam, mentiroso. Controlo meus sonhos.
Tenho consciência de que sonho e os dirijo. Um homem honesto tem que controlar
até mesmo o inconsciente.
Que me
interessa se posso parecer suspeito? Os transeuntes não dão bola para um homem
parado numa esquina. Só os desocupados ou os comerciantes da rua dão conta de
mim. Os vendedores — as lojas hoje em dia andam às moscas — vêm até a entrada
da loja. São homens de gravata e camisa branca de manga curta. Não usam paletó.
Não se precisa de paletó para vender geladeira, aspirador de pó, batedeira ou
televisão.
Sou um homem
bem vestido numa esquina. Um homem bem vestido numa esquina não desperta
suspeitas. Percebo alguns desocupados. O camelô grita bugigangas. O mendigo
pede dinheiro no sinal. É um falso mendigo. Numa sociedade justa não haverá
mendigos. Numa sociedade justa não haverá nem mesmo a necessidade de que um
sujeito como eu se poste na esquina.
Percebo
outras coisas: há leve trottoir de duas mocinhas. Quem passa não percebe nada.
É dia, a calçada cheia, talvez nem mesmo os vendedores percebam o que percebo.
A honestidade às vezes nos torna iingénuos Mas a minha honestidade não é apenas
inata. Aprendi a cultivá-la como quem exercita músculo. A honestidade é
elástica e pode tornar-se flácida. Ou aumentar o tonus.
Dois
malandros tentam me roubar o pacote. O primeiro me pergunta algo. Quê? Outro
vem por trás. Nada é mais criança em nós que a atenção. Reajo, luto. O sujeito
mais manhoso é o baixinho. É forte como o diabo. Ninguém me ajuda. Abre-se um
círculo, grito, esperneio, o pacote se rasga. A multidão assiste impassível.
Pode até ser que tenham algum sentimento de revolta ou de solidariedade com os
bandidos.
Os bandidos
hoje estão em todas as partes. Certa vez fui empenhar as jóias de minha mulher.
A fila se desorganizava. Vinha o guarda, escolhia um elemento. Servia de
exemplo. Preferia as mulheres e os idosos. Batia impiedosamente. Quando
desmaiava, dois seguranças levavam o desordeiro para dentro da agência. O
guarda se afastava. Esperava o próximo levante. De longe, já sabia quem seria a
vítima. Estivesse ela ou não fora da fila. Ao chegar a minha vez, empurrei o
pacote. Na primeira oportunidade, o caixa me mordeu a mão. Gritei. Por fim, com
muita dificuldade — e com os dedos intactos — consegui retirar minha mão.
Talvez o
público esperasse ver sangue e, aí então, reagiria de outra maneira. Em vez de
indiferença, ficariam exaltados. Uns contra mim; outros, a meu favor. Quem sabe
não se moveriam de seus lugares, mas torceriam e xingariam como no boxe ou nas
rinhas de galo. Esta luta que eu e meus desafectos travamos mais parece coisa
de mulher. Há empurra-empurra, dentadas, unhadas. Aos poucos, o público se
entendia e vai procurar outra contenda ou acidente. Algo que os atice e tire da
rotina. Algo com sangue, porque as brigas e acidentes sem sangue são monótonas
como filme com pouco enredo.
Por fim, uma
alma vem me auxiliar. O homem atarracado, meio calvo, pele seca e amarelada,
olhos fundos e sem brilho, vestindo terno surrado, grita-lhes algo. Os bandidos
fogem. O embrulho permanece intacto em seu interior. Meu medo é de que se
rompesse. Teria forçosamente de saber o conteúdo. Um homem honesto não deve
conhecer o conteúdo dos pacotes.
Passei a
noite e a manhã inteiras na esquina. Uma hora qualquer dessas aparecerá o
sujeito que receberá a encomenda. Um sujeito que faz abordagem deve saber a
hora certa. A esquina é esta. Estou seguro. Um homem honesto não pode abandonar
o posto. Poderia muito bem ir para casa.
Do outro lado
da rua, sujeito baixo, gordo e suarento chega à esquina. Está bem vestido.
Debaixo do braço, o pacote. Deve ser também homem honesto. Não nos olhamos. Não
sinto sede nem fome. Muito menos sono. Fui preparado para ser homem honesto. Os
camelôs começam a aparecer, as lojas abrem. Algumas pessoas bafejam o ar frio
da manhã. As pernas sempre atrasadas para o trabalho.
Nas duas
outras esquinas aparecem homens bem vestidos, com belas gravatas, sapatos
impecáveis. Todos os dois carregam pacotes. Já não estou só. Não me atacarão.
Nem quero supor o que traz o pacote. O pecado não está apenas em cometê-lo.
Pensar é uma forma de transgredir. Se controlo o sono e os pesadelos, tenho de
aprender a controlar os pensamentos." Ronaldo Costa Fernandes, in Jornal
Opção, Brasil
Ronaldo Costa Fernandes é escritor.
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