Odysseus un die Sirenen, Gerard de Lairesse(1640-1711) |
Viajar com Ulisses
(A propósito de Camões)
Por Eugénio Lisboa
“Um verso
célebre do poeta francês do século XVI, Joachim du Bellay, reza assim, na
densidade austera da sua infinita riqueza:
“Feliz quem, como Ulisses, fez uma boa viagem”. Na verdade profunda que contém, o verso
esconde um facto notório e algo perturbante: é que a famosa odisseia de Ulisses
esteve emperrada nove alongados anos, com o herói encalhado nos braços
sedutores de Calypso. E, quando deles se
libertou, foi menos para se dar de novo aos prazeres da viagem do que para
regressar, obediente e provavelmente cansado, a Ítaca e se abandonar à rotina
da vida doméstica (com, pelo meio, também é verdade, um derradeiro urrah! de
vigoroso guerreiro votado à chacina dos atrevidos pretendentes de Penélope). Esqueçamos, no entanto, como dizia a
inesquecível Suze, de António Patrício, estes “pormenores” e erijamos, sem
escrúpulos de maior, Ulisses como símbolo da viagem. Fazer como Ulisses uma boa viagem! Quem não passou por sonhar isto, sobretudo os
da minha geração – que pouco ou nada viajava, antes de uma certa idade – e os
que, como eu, adolescentes, viviam confinados num Moçambique, remoto e
esquecido, ainda que vivificado pelo sol e pelo Índico, omnipresentes,
obsessivos e fecundos. Vivendo
literalmente dentro do Índico, em que nos banhávamos diariamente, como quem
carrega baterias, sentíamo-nos sensual e misticamente ligados aos mundos a que
o mar – aquele mar – conduzia. “A voz do
mar”, dizia a grande romancista norteamericana, Kate Chopin, “fala-nos à alma. O toque do mar é sensual, envolvendo-nos o
corpo no seu abraço apertado e macio”. O mar, “cúmplice do desassossego
humano”, como dizia Conrad, que nele viveu e sobre ele magistralmente escreveu,
simultaneamente nos aplacava, nos seduzia e nos inquietava. Vivíamos nele e com ele, mas seria
despropositado dizer que falávamos com ele de igual para igual. O mar acariciava-nos e fazia-nos ilimitadas
promessas mas, por outro lado, sentíamos que nos ameaçava com a sua
irresponsável enormidade. Os poetas sabem
destas coisas, quero eu dizer que sabem vê-las e sabem dizê-las
para que nós delas tenhamos, depois, mais clara consciência. Carl Sandburg, poeta audacioso dessa América
desmedida e um pouco brutal, observava que “o mar fala uma língua que as
pessoas educadas nunca repetem. É um
colossal calão de abutre e não respeita coisa nenhuma.” Era nesse intemperado e temível calão, forte
e selvaticamente poético, que o Índico, nos anos quarenta, nos fazia ameaças,
mas nos aliciava também com inesgotáveis promessas. A alguns de nós ele prometia, sobretudo, uma
viagem. Nesse tempo, não havia ainda
Universidade naquelas margens do Índico em que se falava português. Estudar implicava mudar, isto é, viajar. Viajar, isto é, ir descobrir – ir ver,
claramente vistos, outros horizontes, outros sóis, outras gentes. Ir fazer, em sentido inverso, grande parte da
viagem que fizera Vasco da Gama em 1498 e Camões cantara nos Lusíadas em que os nossos quinze anos se
tinham, quase deslumbradamente, iniciado
O “largo mar”, “o longo mar”, “o duvidoso mar” e, também, hélas!, “o
irado mar”, entre Lourenço Marques e o Cabo das Tormentas, e, depois, o resto,
mais calmo, até Lisboa, ia ser nosso durante um mês de viagem. Nele iríamos saudável e, por vezes,
penosamente, aprender e desaprender.
Deixar lastro velho e ardido (preconceitos, crenças, falsos
conhecimentos) e adquirir, ao sopro fresco do observado em primeira mão,
conhecimentos novos. Enquanto líamos
sobre a Europa nos romances que apaixonadamente devorávamos (O Lírio Vermelho oferecia-nos Florença, Os Thibault abriam-nos as portas de
Paris, do mesmo modo que Lawrence nos ofertava a Inglaterra e o México, ou
Panait Istrati os cardos do Baragan romeno, ou, ainda, Eça de Queirós nos
iniciava em Lisboa e nos seduzia com Sintra), enquanto líamos, sonhávamos com a
longa viagem que nos levaria da Ítaca lourenço-marquina à Europa onde
lançaríamos o nosso cerco de que resultaria a conquista final e
inevitável! Seria, como ensinava Gide,
uma longa viagem de desinstrução que nos garantiria, subsequentemente, uma nova
(mas também provisória) instrução. Toda
a viagem – e a do Gama, nos Lusíadas
e na realidade, não foi excepção – é simbolicamente, uma busca da verdade ou de
uma verdade melhor, ou da sabedoria ou de uma sabedoria melhor, ou da paz, ou
de um bom comércio ou da imortalidade ou de uma maior simplicidade ou
simplificação das nossas vidas (Gide notava que ia muitas vezes viajar apenas
para fugir ao peso dos seus bens). O
viajar bom e produtivo é sempre um fugir à rotina, ao que já se sabe muito bem,
ao onde se está demasiado bem. Viajar
deve ser um abandono do que já nos não excita, uma desinstrução necessária a
bem de uma nova instrução que nos recria e nos faz viver de novo. Nesse livro de um lirismo arrebatador, que perturbou
e agitou jovens de todas as latitudes e longitudes do Globo terrestre, no final
do século passado e sobretudo no primeiro quartel do nosso século – refiro-me a
Les Nourritures Terrestres – André
Gide proclamava com provocante despudor: “Enquanto outros publicam ou
trabalham, eu passei três anos de viagem a esquecer, pelo contrário,
tudo o que tinha aprendido de cabeça.
Essa desinstrução foi lenta e difícil; foi-me mais útil do que todas as
instruções impostas pelos homens e foi, verdadeiramente, o começo de uma
educação”. Mais adiante, dirigindo-se a
um discípulo imaginário, exorta-o nestes termos: “Nataniel, eu quero aprender o fervor. [...] não te demores ao pé daquilo que se
parece contigo; não permaneças nunca, Nataniel.
Desde que um ambiente se começou a parecer contigo ou tu com ele, deixou
de ser, para ti, proveitoso. É
preciso deixá-lo. Nada é mais
perigoso para ti do que a tua família, do que o teu quarto, do
que o teu passado.” Era este
mesmo André Gide que afirmava ter escolhido como seu herói favorito não Ulisses
– por causa de Ítaca que definitivamente o roubou à viagem – mas, sim, Sindbad,
o marinheiro, de uma das histórias de Scheerazade, n’As Mil e Uma Noites; porque, conforme explicava Klaus Mann, na
célebre biografia que consagrou ao autor das Nourritures, “Sindbad não tem Ítaca à sua espera, nem esposa, nem
filho, nem cão. Nem existem nele
sentimentos capazes de extinguir-lhe o fervor.”
Sindbad era,
em suma, a disponibilidade absoluta para a viagem, a aventura – a
aprendizagem. Como a marinhagem de
Vasco da Gama, que se fez ao mar disponível para aprender do que seus olhos
vissem “claramente visto”, em flagrante desrespeito da cultura oficiosa que
Aristóteles por tantos séculos legara, assim nós, ainda que a medo, largávamos em
Lourenço Marques e caminhando em sentido inverso, casa, quarto, família,
passado e cão – ao encontro de conhecimentos novos que pudéssemos ver claramente
vistos. Equipados unicamente de
abertura de espírito, audácia e olhos, os marinheiros do Gama exercitavam-se,
com orgulho quase triunfalista e não pouca euforia, a ver os fenómenos
que a natureza generosamente lhes propiciava:
Vi,
claramente visto, o lume vivo
Que a
marítima gente tem por santo,
Em tempo de
tormenta e vento esquivo,
De tempestade
escura e triste pranto.
Não menos foi
a todos excessivo
Milagre, e
cousa, certo, de alto espanto
Ver as nuvens
do mar, com largo cano,
Sorver as
altas águas do Oceano.
Neste orgulho
de confiar no que os olhos viam – o Renascimento começava a estar em vigor – Camões
põe na boca do Gama, em pouquíssimas estrofes, nada menos que oito vezes
o verbo ver. Ver, acreditar no
que se via e não no que diziam as escrituras (fossem elas religiosas,
filosóficas ou científicas) tornava-se, por fim, postura normal do cientista ou
do estudioso tout-court. Ver, antes de
sentenciar. Por isso observou Bertrand
Russell, alguns séculos depois e com não pouco humor, que Aristóteles teria
podido evitar a afirmação de que as mulheres têm menos dentes do que o homem,
pelo expediente fácil de pedir à Senhora Aristóteles que abrisse a boca. O Gama e os seus marinheiros não pediam
exactamente à natureza que lhes abrisse a boca, mas solicitavam-lhe, isso sim,
que se abrisse, com os seus infinitos segredos, à perscrutação que sobre ela, gostosa
e assombradamente, iam exercitando.
Fazer confiança na observação é um tópico que Camões canta com vigor e
algum panache: na boca do Gama, põe estas palavras que quase intersectam um
justificado orgulho ou até arrogância:
Eu o vi
certamente (e não presumo
Que a vista
me enganava) levantar-se
No ar um
vaporzinho e sotil fumo
E, do vento
trazido, rodear-se;
De aqui
levado um cano ao polo sumo
Se via,
tam delgado, que enxergar-se
Dos olhos facilmente não podia;
Da matéria
das nuvens parecia.
...”E não
presumo que a vista me enganava”. Eis o
emblema triunfal de um novo homem: o homem do saber de experiências feito, o
homem que confia no que a natureza lhe diz e não no que lhe sopram as
escrituras e... os inquisidores. Há no
canto de Camões um petulante e matinal desafio às chamadas “autoridades”:
Vejam agora
os sábios na escritura
Que segredos
são estes da Natura!
Se os antigos
filósofos, que andaram
Tantas terras
por ver segredos delas,
As maravilhas
que eu passei passaram,
A tam
diversos ventos dando as velas,
Que grandes
escrituras que deixaram!
Que influição
de signos e de estrelas,
Que
estranhezas, que grandes qualidades!
E tudo sem
mentir, puras verdades.
Nos Lusíadas, Camões canta a história de
Portugal, por intermédio de Vasco da Gama que a conta ao Rei de Melinde, mas
canta, sobretudo – e com que energia, claridade, alegria e abençoada arrogância
– o nascimento de um homem novo e de um mundo novo – a exigirem cuidados de
manipulação carinhosa e de cautelosa gestão de que o honrado velho do Restelo
duvidara já que fôssemos totalmente capazes.
O velho do Restelo e, com o decorrer do tempo, certamente, o próprio
Camões. Um império se fundou que, melhor
ou pior, foi durando. Mas a decadência
instala-se cedo. Sobrecarregadas de
produtos, de ganância e do frenesi de enriquecer depressa e mal, mal mantidas e
superficialmente reparadas, as naus da História Trágico-Marítima indicam que o
fim do Império começara cedo – a dar razão ao “honrado velho” – e se foi
arrastando por quase quatro séculos: morrer, sim, mas devagar, emblematizara D.
Sebastião que, pelos vistos, era louco mas não era parvo... No “Camões na Ilha de Moçambique”, escrito em
20 de Julho de 1972, de visita à “Isle Joyeuse”, Jorge de Sena pinta já, na
altura do interrompido regresso à pátria do poeta d’Os Lusíadas, o início da decadência, a mesquinha pelintrice de um
império mal gerido e mal “fichu”, em que os vadios e pedintes comem d’amigos ou
das migalhas parcas que o Rei vai, apesar de tudo, deixando cair...:
Não é de
bronze, louros na cabeça,
nem no
escrever parnasos, que te vejo aqui.
Mas num
recanto em cócoras marinhas,
soltando às
ninfas que lambiam rochas
o quanto a
fome e a glória da epopeia
em ti se
digeriam. (...)
Embora com a
pátria morrendo, o poeta, em 1580, a sua obra foi ficando e inspirando outros
poetas, do mesmo passo que o império, com mais ou menos sobressaltos de vida
artificial, se foi finando: as suas duas finais e minúsculas parcelas em breve
se irão para novas vidas e novos destinos.
Mas os impérios são uma coisa e quem os canta outra muito
diferente. Camões tem ficado, no mundo
de fala portuguesa, como referência capital.
Tenho encontrado, por todo o mundo, em África, no Brasil, na América,
gente não portuguesa que recita, de cor e com paixão, estrofes dos Lusíadas, sonetos, canções, odes do
grande poeta português. No fundo, todo o
grande poeta de língua portuguesa sofre, saudavelmente, da angústica de não ser
Camões: uns tentam igualá-lo ou superá-lo, do mesmo passo que ensaiam
diminui-lo, com qualificativos redutores;
outros julgam tê-lo, de facto, igualado ou superado: a paranóia é a
virtude cartesianamente mais bem distribuída – mais ainda do que o bom senso,
de que é saborosa antípoda... Fernando Pessoa, por exemplo, imaginou-se
supra-Camões, sugerindo, contraditoriamente, não ser isso grande feito, porque
o “italianizado” autor de “Alma Minha” pouco mais lhe merecia do que
desprezo; Jorge de Sena ter-se-á mesmo
perguntado se tal projecto –supra-camonear-se – seria sequer digno da sua (de
Sena) magnitude; Régio, que admirava sem reservas o bardo renascentista
seguiu-lhe, simplesmente, e sem bravata, o estro e a toada, nas oitavas
escaldantes da “Sarça Ardente”:
Assim, mãe,
mãe de enigmas e de assombros,
Natureza!, me
achei a ti alçado;
Assim, por entre
os cúmulos e escombros
Dos teus
cenários, me perdi, jogado;
E assim, mãe,
me surgiste, o azul aos ombros,
Ofertando e
premindo o seio inchado
De aragens,
néctares, hálitos, eflúvios,
Himalaias,
Atlânticos, Vesúvios...
Ilha de Moçambique |
Rui Knopfli,
moçambicano da Terra da Boa Gente, menos atrevido, mais modesto, abertamente
fascinado pelo bardo de Sôbolos Rios,
limitou-se a querer prolongá-lo para além da glória até ao momento
exacto do fim, num Roteiro melancólico da Ilha de Moçambique, que nos entregou
como quem se despede do Império e da sua intoxicante vastidão (que criticou mas
amou) e da vida, de que nunca gostou por aí além:
Uma humidade
escura [diz, referindo-se à Ilha] e pegajosa, alastrará
de
novo
sobre o teu
dorso de brancos e amarelos, desenhando
nele estranhos,
esquálidos arquipélagos fantásticos.
A gangrena e
a lepra do tempo minarão
encarniçadamente
o teu arcaboiço atarracado,
modelando-te
à imagem e semelhança do bizarro
solo
osteoporoso em que – memória cristalizada –
repousas
entorpecida de mar e ausência,
esmerilado e
exacto monumento à vã cobiça
aos erros
graves e à grandeza desmedida que os gerou.
Sob a
metálica indiferença de um céu anil,
porto de
olvido na rota perdida das Índias,
volverás
assim um ressentimento da areia,
soluço de
pedra ao sabor da monção.
Assim cantam
os grandes poetas o nascimento, crescimento, decadência e morte dos impérios:
morrem as estruturas materiais mas salva-se o canto. De resto, dizia já o velho Mestre de
Santiago, da grande peça de Montherlant, que “as colónias são feitas para serem
perdidas. Nascem com a cruz da morte
estampada na fronte”. A poucos meses de
se desligarem de Portugal as duas minúsculas parcelas de um império que foi grande,
mesmo quando mal governado, e atracadas que forem as naus portuguesas no cais
do regresso definitivo, restar-nos-á fazermos como os marinheiros do Gama, que
se foram desinstruindo para melhor se instruirem de fresco, e desaprendermos
todo um modo de viver e estar no mundo para podermos aprender uma nova maneira
de abrirmos espaço à nossa volta – um espaço que não será físico mas
espiritual, cultural, científico – e mais fraterno. Arrumadas as caravelas no museu do património
de que não temos só que nos envergonhar – porque muito há de positivo e até de
grande a celebrar -, compete-nos aprender a viajar noutro veículo que herdámos,
com um esplendor nunca depois excedido, de Camões – a língua portuguesa, que
ele manipulou com astúcia, subtileza, inteligência, intuição e – não sejamos
modestos – génio e inventiva e emoção, dela fazendo um instrumento de peculiar
eficácia com que nós e outros que por esse mundo visitámos pudéssemos explorar
o nosso comum e vário assombro: aquele assombro que é motor de arranque para
tudo quanto o homem tem produzido de inconfundivelmente grande. Se Camões outra coisa não fosse – e foi um
grande e inimitável poeta, isto é, um promotor e decifrador de espantos –
ficaria sempre como o patrono privilegiado de uma língua que só é grande na
medida em que é partilhada e trabalhada e saborosamente modificada por tantos
que se distribuem pelas mais desvairadas latitudes e longitudes, fecundados por
sóis diferentes e batidos por ventos diversos.
Em três
versos densos e tersos, o poeta António Ferreira, contemporâneo de Camões,
cometeu à língua portuguesa, o seguinte e audacioso caderno de encargos:
Floresça,
fale, cante, ouça-se e viva
a portuguesa
língua, e lá onde for
Senhora vá de
si, soberba e altiva.
Em memória de
Camões e a pensar nos que hoje, em todo o mundo, dele herdam o esplendor da
língua, resta-me desejar que o mandato de António Ferreira possa ter, pelos
séculos dos séculos, cabal cumprimento."
Eugénio Lisboa
Junho de 1999
Eugénio Lisboa, em ” Viajar com Ulisses,( a propósito
de Camões)”, Ensaio publicado em “ Pro Memoria”,
Jornal de Letras
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