A Onda
Canto a onda...
amazona das águas e dos ventos
a cavalgar esbelta sobre o dorso do oceano
pelas planícies tropicais dos mares
a cavalgar sob o sol e sob a lua
até a longínqua
solidão dos hemisférios
a cavalgar sua
cadência fugidia
pelo imenso território dos silêncios.
Canto a onda
salgada crista
verde brancura sempre erguida
e sempre despejada
canto teus canteiros
borbulhantes de frescor e de açucenas
teu sorriso derramado
em pétalas de espuma
canto teu beijo sugado ardentemente pela Terra
úmida fragrância espalhada nas areias do tempo
ritmo incessante dessa dança milenar.
Canto a onda
guardiã do mar e dos mistérios
atlética miragem que caminha sem descanso
vigiando as inumeráveis multidões de vidas
a caminhar sobre a imensa solidão das águas
a caminhar nos passos de lépida gazela
ou no galope da vaga majestosa.
Canto a onda
a grande onda
potência elementar
coluna insustentável que anuncia o precipício
súbita cascata, túnel e turbilhão
força imbatível,
peso imponderável
filha do ventre ancestral das águas
vulto encoberto que avança obstinado
até surgir qual serpente coleante
galgando o planalto submarino
empinando a cabeça para o bote
tentáculo de sal, insólita medusa
invencível lâmina cortada por afiadas proas
sedução e pavor dos navegantes.
Longe... longe sobre as águas,
pairando
na calmaria,
surge no céu um negrume...
e tudo é brusco e fantástico na paisagem que ressurge
são nuvens redesenhadas num borrão assustador
vem alargando seus passos
invadindo o horizonte
desterrando as claridades
turvando as ondas vadias
vem vindo no verde mar qual corcel em disparada
assanhando os elementos sobre a linha do horizonte
é o céu baixando à Terra
chegando na ventania, na rajada, no aguaceiro.
Um raio risca a penumbra e mergulha no oceano
e num frêmito aquoso se enruga a
superfície.
Há uma tensão sob as águas
há um prenúncio nos ventos
as vagas se
levantando
ressurgindo
poderosas
no punho emerso do abismo
nos bramidos da procela colossal
na indomável fúria da tormenta
na invasão que avança.
Eis onda...
ora calma e deslumbrante
e agora o vulto
apavorante
a galopar, qual indomável centauro sobre o mar,
avançando em sua marcha soberana
qual extensa muralha em movimento
alçando seu punho inumerável
exibindo seu pesado látego de espumas
chicoteando a muralha, o arbusto e a penedia
bramindo no poder dos elementos
chegando no estrondo, no vendaval, na fantástica
sinfonia
invadindo, inundando e espalhando seus despojos.
praias varridas
orlas de vida e de sonhos afogados
os imensos litorais tragados
os restos desfigurados da invasão
pedaços de barcos destroçados
lágrimas que ainda esperam
pescadores que não mais voltarão.
Contém, ó mar
teus passos sobre a Terra
tua reconquista
teu apocalíptico destino.
Já são tantos os sinais dos tempos
tanta irreverência ante tantos pressentimentos.
Ó mar...
são tão grandes teus domínios
escavados na origem desta concha planetária.
Deixa intacta esta nossa única terça parte
este verde agonizante que nos resta
esta solitária relva de esperança.
Curitiba, Março de 2004
Manoel de Andrade, in “ Cantares”,Escrituras Editora ,
São Paulo,2007
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