Justificação
Monótono cantor à porta do destino,
Tenho a desculpa da monotonia
Do sofrimento humano.
Dói-me, e a dor não varia:
É um inverno que dura todo o ano…
Miguel Torga ,Coimbra 25 de Outubro de 1960, in “ Diário IX”
Miguel Torga teceu uma extensa obra em diversos géneros literários que vão desde o Conto, em que é mestre,o Teatro, o romance, à Poesia , domínio da excelência que jamais deixará de nos surpreender. O registo diarístico que processou ao longo da sua vida é um painel rico e diverso do seu génio literário. Repartido por dezasseis volumes, o Diário apresenta poemas, esboços de contos e magníficos textos que retratam a realidade existencial do poeta e da época da sua produção. Em Junho de 1977, Miguel Torga foi a Bruxelas receber um Prémio de Poesia da Bienal Internacional de Knokke-Heist que lhe tinha sido atribuído. Sobre essa viagem, no Diário XII , registou, no dia da chegada, algumas reflexões sobre o seu percurso de vida e, no dia da entrega do galardão, o Discurso que proferiu . Registos que transportam a imagem de um homem que se construiu pela força do trabalho, por uma tenaz vontade de aprender e que sempre se afirmou íntegro, independente, vertical e humilde. Pela riqueza, pela mestria e pelo fascínio literário que patenteiam as palavras deste excepcional poeta, a X edição de “ Sobre a Poesia” pertence-lhe.
Bruxelas, 4 de Junho de 1977 - As voltas que a vida dá, e como acaba por atar as pontas para se fechar num círculo simbólico! Quando há sessenta anos, como emigrante, desembarquei no Rio de Janeiro do porão de um navio, esperava-me no cais um sujeito desconhecido com a minha fotografia na mão , a fim de me identificar; há pouco , ao descer do avião, aconteceu coisa parecida: uma senhora, igualmente estranha, erguia à porta de saída um grande cartão onde li, entre comovido e divertido, o meu nome. O rapazinho de outrora ia comer o pão que o diabo amassou; o velho de agora vinha receber um prémio internacional. O prémio de ser fiel às origens, e de ter sempre, como os antepassados, mourejado na mesma humildade e tenacidade , de enxada na mão ou de caneta na mão. Miguel Torga in “ Diário XII”
“A poesia foi sempre um pesadelo e uma fascinação para os poderosos..” Miguel Torga
Discurso de Miguel Torga na entrega do galardão que lhe foi atribuído, o Prémio de Poesia da XII Bienal Internacional de Poesia de Knokke-Heist.
Bruxelas, 6 de Junho de 1977 - Palavras que vim hoje aqui dizer :
Minhas Senhoras e meus Senhores :
A poesia está de festa. Não porque a vemos neste momento celebrada na pessoa de um poeta qualquer, mas porque uma das tonalidades da sua voz foi finalmente ouvida e reconhecida num conclave onde até hoje nenhum Espírito Santo a fizera descer. É o português uma velhíssima e nobre língua latina espalhada pelos cinco continentes. Nela cantaram e cantam grandes vultos inspirados, de Camões a Fernando Pessoa, de Bernardim Ribeiro a Teixeira Pascoaes. Capaz de dar guarida às mais desabusadas fúrias épicas e às mais discretas confidências líricas, dúctil e colorida em todos os paralelos geográficos que nas suas andanças visitou, poucas a igualam nos fecundos dons proteicos, na sua barroca plasticidade. Mas a Europa culta conhece-a mal, e a lira temperada nos confins ibéricos «onde a terra se acaba e o mar começa», embora com todas as cordas a vibrar de extremo ocidente a extremo oriente, tem sofrido, séculos a fio, a injusta condenação de se ver privada de participar no polifónico coro das nações, e de emprestar à orquestração universal o inesperado concurso de uma vivida e natural simpatia cósmica. Felizmente que o encanto se quebrou por obra e graça do vosso arbítrio. Seja essa a precária virtude dos meus versos : contribuir, na sua exacta medida, para que a singularidade expressiva de um povo, simultaneamente loquaz e sucinto, urdidor de romanceiros e sintetizador de rifões, possa de ora avante patentear à curiosidade cosmopolita toda a sua riqueza e originalidade. É mais um benefício que ficamos a dever às bienais de Knocke a ao seu clarividente fundador. Arredondar o mundo da poesia – como Fernão de Magalhães, um lusitano sem fronteiras, fez ao mundo físico - , é dar-lhe a total dimensão que ela deve ter na mais dilatada aspiração da sensibilidade humana.
Hora de regozijo, pois, para todos nós, servidores de Orfeu. Mas hora igualmente amarga se a meditarmos a outra luz menos apaixonada. Se a projectarmos para além desta grata circunstância concreta em que às letras da minha pátria toca o maior quinhão. Fora de tais limites, já o vinho com que brindamos tem menos doçura. A negra realidade do que é sobrepõe-se à clara irrealidade do que parece, e um pertinaz mal-estar esmaece a passageira euforia do nosso mútuo encontro.
Bem sabemos que no longo caminho da História muitas vezes a poesia é coroada de rosas. Na Grécia de Péricles, na Roma de Augusto, nas cortes provençais, na Florença dos Medicis, assim sucedeu. Mas coroada pela tácita confluência de uma admiração espontânea e generalizada, e não pelo expresso voto dos seus obreiros, feitos advogados em causa própria, como é o nosso caso. Uma assembleia de poetas a premiar um dos seus pares não significará que a poesia, longe de se mirar no límpido espelho da sua glória, se vai esquivando da melhor maneira que pode ao doloroso reconhecimento da sua imagem diminuída? Por muito que nos doa, tais simulacros de sucesso, permutados em circuito fechado, disfarçam mal a evidência de uma crise de identidade que nenhuma retórica consegue exorcizar.
Já lá vão uns anos, numa mensagem enviada a um congresso de poetas, realizado perto da Via Ápia, aludi às catacumbas de resistência, onde a poesia, num reflexo de integridade ofendida, teria de se recolher para preservar o seu milagre sempre renovado de criação. Gritava então do fundo de um poço de angústia, na incerteza de encontrar ressonância nos meus companheiros na crença e na desgraça. Era no apogeu das triunfantes ideologias de massas em que ser poeta inconformado valia por um atestado civil de maldição. A presença de qualquer de nós no seio da sociedade correspondia, no critério das ditaduras vigentes, à presença aberrante de um tumor maligno nas entranhas de um corpo homogéneo. E enchíamos os Cáceres como os demais cidadãos que se sabiam e queriam diferentes e livres. Mas essa violência estava na lógica das coisas. Ao mesmo tempo incómoda e sedutora, a poesia foi sempre um pesadelo e uma fascinação para os poderosos. Em todas as épocas os Césares pretenderam simplesmente aniquilá-la ou, mais argutamente, utilizá-la, até ao ponto de usurpar-lhe os méritos. Confusamente conscientes de que para cada verso existe um eco, que o verbo se faz carne em cada poema, que onde esteja um poeta e haja quem saiba ouvi-lo se gera uma corrente de comunicação a partir da qual já nenhuma inquietação se deixa iludir de boa fé, nada mais natural de que o desejo de mobilizar essa força em proveito próprio, arremedando-lhe os processos encantatórios ou prestigiando os vates oficias, promovidos a príncipes da rima. E foi, não a pensar neles, nesses olímpicos rojados aos pés do poder, mas de olhos postos no heroísmo de António Machado e no martírio de Lorca, meus vizinhos e contemporâneos, que toquei a reunir. Mal imaginava eu que não tardaria muito estaríamos diante de nova calamidade: a praga mefítica do poeta refugiado nas suas qualidades menores, a cantar de ouvido hinos que deveriam irromper das funduras da alma, a iludir o que não quer revelar, ou a encobrir com palavras de superfície a debilidade do estro. Furtando-se à tutela dos totalitarismos expressos, mas envergonhada da sua condição e a render-se com armas e bagagens a padrões que nem pelo facto de serem mais subtis deixam de ser menos tirânicos, não deslizará irremediavelmente a poesia para os abismos de um totalitarismo implícito? Solidário mas autónomo, o poeta é um rebelde que sabe que a poesia apenas subverte porque transfigura, e que será esse sempre o seu vanguardismo. A cantar ao sabor da moda, um poeta vestido de bardo não é menos trágico do que um poeta ataviado de fâmulo.
É nessa encruzilhada de perguntas e dúvidas que radicam as minhas apreensões, agravadas dia a dia perante a evidência do isolamento progressivo em que no íntimo vivemos todos. Os que resistiram à tentação e os que se deixaram tentar. Os que persistem em ser descomprometidos apóstolos da liberdade; os que cederam à comodidade de pôr a poesia ao serviço de causas que lhe são alheias; e ainda os que, perplexos, à mingua de um ponto de aplicação, a escamoteiam em jogos herméticos e ambíguos, onde ela se perde como a melhor água numa esponja de areia. Uns por razões de fora, outros por razões de dentro, outros por incidência de ambas, todos vivemos exilados dentro de nós, mesmo quando assim conviventes, a repartir irmamente, num acto compensatório, os louros sagrados do Parnaso. Porque não vale a pena encobrir a verdade. Temos de o confessar lealmente: embora tais festões constituam um mútuo estímulo e um lenitivo, murcha-lhes o viço não sei que sombra de solidão. Talvez a certeza melancólica de que apenas nos dariam inteira alegria na hora em que conseguíssemos merecê-los e recebê-los das mãos rendidas e limpas daqueles que connosco comungassem na convicção de que a poesia, na transparência da poesia, só não trai o semelhante quando não se trai a si próprio."
Miguel Torga in “ Diário XII”, Círculo de Leitores
Actualmente tudo ainda se apresenta assim... A Poesia resiste ao assédio, ao apropriamento que lhe tentam fazer os políticos, os que governam, e mais senhores que se dão ao trabalho de "varredores" da nossa Cultura, na vida pública portuguesa. Miguel Torga com a frontalidade, simpliciade, arrojo e honestidade que sempre demonstrou em todas as épocas da sua vida resistiu, resistiu sempre a qualquer "agiornamento", ao aceno gentil dos farisaicos galanteadores, resistiu ao som das campaínhas que tocaram por toda a parte, às muitas luzes com que lhe acenaram, resistiu a todos os modos com que o tentaram converter, seduzir, assambarcá-lo, apropriarem-se da sua Arte e do quanto o seu nome e a sua figura representavam não só na Literatura Portuguesa, como na vida política nacional. Felizmente, nunca o conseguiram, porque ele também nunca se deixou embalar, nunca o quis!... O Dr. Adolfo Rocha, médico otorrinolaringologista, para os seus muito queridos doentes... O Miguel, em vida, no Brasil emigrado, ou em Coimbra, ou na Galafura transmontana... Torga, Torga para sempre, para todo o sempre!... Ele foi um dos rostos de Portugal, de um Portugal maior. Honremos a memória deste Homem! - V. P.
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