quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O fascínio da heteronímia pessoana

«Fernando Pessoa e os heterónimos»
Pintura de Costa Pinheiro (1976)
A heteronímia pessoana tem cativado o olhar de muitos estudiosos , mas também tem sido uma excelente fonte para a criação literária. Em 2008, Mário Cáudio publicou a novela "Boa Noite, Senhor Soares”, (Lisboa, Dom Quixote) em que Bernardo Soares é uma das personagens. A apresentação da novela foi feita por Emílio Rui Vilar que traçou alguns dos aspectos mais relevantes da obra. Revisitar este livro é o propósito a que nos dispomos hoje, pelo que transcrevemos um excerto precedido do texto de Rui Vilar.
Da Apresentação :
“Fernando Pessoa continua a fascinar. Mário Cláudio não escapou e vai fascinar o leitor com esta revisita ao heterónimo Bernardo Soares . Aliás, um semi-heterónimo, como o próprio Fernando Pessoa o definiu, na célebre carta a Casais Monteiro que aqui vou lembrar: «O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade
Bernardo Soares é portanto uma personalidade reservada e enigmática que se esconde atrás do seu criador e com ele se confunde. E, se no prefácio de Fernando Pessoa, ele mesmo, ao Livro do Desassossego, afloram elementos que permitem vislumbrar o seu autor, talvez esses elementos conduzam o leitor a concluir que o traço central da personalidade de Bernardo Soares seja precisamente a sua recusa em expor a circunstância da sua vida.
Tomá-lo para personagem central de uma história, como Mário Cláudio faz neste livro, poderia sugerir uma quase total reinvenção. Mas não me parece ter sido essa a opção do Autor. Preferiu enveredar por um caminho bem mais difícil, mas muito mais consentâneo com o semi-heterónimo de Pessoa.
Para se manter fiel, em primeiro lugar ao criador, Fernando Pessoa, e em segundo lugar a Bernardo Soares, o autor baseou-se em referências dispersas no Livro do Desassossego. E recorreu a um artifício engenhoso, que vai envolvendo o leitor. Um processo de aproximação progressiva, em que o visado (Bernardo Soares) quase sempre joga às escondidas, protegendo a sua privacidade de um olhar directo, mas que atrai irresistivelmente a curiosidade.
Mário Cláudio escolheu para personagens alguns nomes que surgem no Livro do Desassossego, e passo a citar: «Se houvesse de inscrever […] a que influências literárias estava grata a formação do meu espírito, abriria o espaço ponteado com o nome de Cesário Verde, mas não o fecharia sem nele inscrever os nomes do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, do Vieira caixeiro de praça e do António moço do escritório
Para narrador da história, Mário Cláudio escolheu o moço do escritório, António, talvez por ser o mais novo, o mais ingénuo e por isso mais capaz de ser tocado por aquele ser estranho com quem convive à distância no escritório do patrão Vasques.
Em “Boa Noite, Senhor Soares” recebe um nome completo — António da Silva Felício — e é um jovem acabado de chegar da província, mais precisamente de Escalos de Cima, concelho de Idanha a Nova, para se empregar como aprendiz de caixeiro no escritório de um armazém de venda a retalho da baixa lisboeta, na prosaica Rua dos Douradores, onde o senhor Soares é tradutor.
Com a simplicidade própria de quem nada conhece, António tudo e todos observa com atenção. E limita-se a descrever o que presencia, como se o fizesse quase apenas para si próprio, sem emitir juízos.
Desde o primeiro momento que o rapaz fica preso à figura do Senhor Soares que, segundo diziam os seus colegas, «embora não se distinga de qualquer outro sujeito, a verdade é que deu sempre mostras de ser um bocadinho esquisito» (p. 18).
(…)Evocação pessoana ou alegoria sobre a juventude, ou ambas, este livro é para ler, suavemente, da primeira à última página, sem parar.” Por Emílio Rui Vilar, publicado em 9.9.2008 na secção Recensões Críticas da Revista Colóquio Letras. (Este texto teve como base a apresentação do livro em Lisboa e foi publicado no JL de 2-15 Julho de 2008.)

Da novela " Boa Noite, Senhor Soares" :
"Declarariam depois que o senhor Soares se não distinguia de qualquer outro sujeito, mas a verdade é que ele dera sempre mostras de ser um bocadinho esquisito. Espiávamo-lo no seu posto com uma ruga na testa, a tentar traduzir nas cartas que redigia aquelas designações antigas, e aqueles números que era indispensável reduzir a jardas, a polegadas e pés. Nos dias em que se achava menos aborrecido o senhor Soares gostava de falar com os rapazes sobre certos tecidos que eram a seda, originária de Samarcanda, ou os brocados, provenientes de Isphaham, e ficava, muito pensativo, a fumar os seus cigarros de onça que lhe crestavam os dedos. Ele olhava para nós com toda a atenção, fixando a vista no senhor Moreira, no senhor Borges, nos caixeiros, no moço, e até mesmo no gato Aladino, com uma espécie de ternura que nos assustava, e acendia outro cigarro, e voltava à sua escrita. Não faltava quem lhe fizesse notar que como tradutor andava a ser explorado, pagando-lhe o patrão Vasques muito menos do que aquilo que ele se recusava a que me trocassem por um novo, e mergulhava nele a pena com o maior dos vagares enquanto ia pensando em coisas que não deveriam ser deste Mundo. Perto do sítio onde o senhor Soares trabalhava, e por cima do lugar onde costumava sentar-se o Alves, um maluquinho que tivera alta do Miguel Bombarda, e a quem por esmola consentíamos que nos dobrasse as folhas de papel pardo, e enrolasse os retroses das encomendas que recebíamos, estava um calendário de 1931 que ninguém quisera tirar da parede. O senhor Soares punha-se a fitá-lo com grande concentração, e acabava por sorrir para aquela gravura da rapariga de lábios vermelhos, de fita rosa nos negros cabelos, de blusa de decote aberto, e a abraçar um molho de papoulas. Surpreendíamo-lo noutras ocasiões, a examinar com minúcia o mata-borrão, e percebíamos que o senhor Soares se sentia fascinado pelos rabiscos que tinham sido mal absorvidos, todos negros porque ele só usava tinta dessa cor, e salpicados de borrões que se assemelhavam a ilhas no meio do nevoeiro. Cheio de curiosidade, atrevi-me a ir verificar uma vez o que lá se encontrava estampado, e descobri a assinatura dele, do senhor Soares, às avessas, e ao invés, mas fui-me logo embora com a ideia de que tinha cometido urna indiscrição que não se desculpava. A minha maior surpresa aconteceu porém numa tarde em que estávamos apenas os dois no escritório, e o senhor Soares saiu sem uma palavra, deixando-me sobre a secretária um barquinho de almaço pautado, e com este nome no casco, desenhado a lápis, António. Nunca o meu pai construíra para mim fosse o que fosse que a isso se comparasse, e eu guardei o barquinho durante longo tempo na gaveta onde tinha o fio de oiro que me oferecera a minha mãe, e o terço branco da comunhão solene. Mas havia momentos mais raros em que o senhor Soares nos causava bastante sobressalto, atirando de repente com a caneta para a secretária, e divertindo-se a vê-la rolar pelo declive do tampo. Foi isso o que sucedeu na manhã em que descortinou na borda do tinteiro uma mosca-varejeira nojenta, e em tons de verde e azul-escuro. O senhor Soares levantou-se do banco, e dirigiu-se à porta das escadas sem se virar para o espelho como se o espelho pudesse assassiná-lo. Tirou o chapéu do cabide, e nem sequer se despedindo como era seu hábito, fui eu quem disse muito em surdina, «Boa noite, senhor Soares.»
Mário Cláudio, in "Boa Noite, Senhor Soares", Dom Quixote Ed., 2008

2 comentários:

  1. Ninguém falou melhor de Fernando Pessoa, sobre Fernando Pessoa, que o próprio através de outros, personagens criados por si, quando os colocou a falar consigo! A heteronímia de Pessoa tem uma possível (e mais que certa...) origem na sua personalidade dissociativa, patologia que permite a algumas pessoas desdobrarem-se noutros, às vezes em muitos outros com características, perfis, gostos,capacidades, obras diferentes, para além das origens dispersas, mesmo em termos geográficos desses outros. Posto isto, ou colocada assim a questão, poderíamos perguntar porque não possuem muitas mais pessoas, a genialidade de Fernando Pessoa, traduzida nessa riquíssima obra literária e filosófica?... Provavelmente por essa mesma dissociação da personalidade ter graus diferentes, e sonoridades díspares, e alterações poliédricas ainda não completamente estudadas cientificamente, e que terão a ver também com a variabilidade da componente genética causadora da dissociação. Mário Cláudio, produtivo e exímio artista da palavra escrita, há muito se apercebeu que se pode construir Arte sobre Arte edificada, se pode romancear o já romanceado, criado pelos caprichos da própria natureza humana. Entretanto... A mente, o estudo da mente continua, continuará por muitos e muitos anos a ser uma fonte inesgotável de descobertas, de surpresas, de constrastes inacreditáveis, e paradoxos que nos conduzem a uma plétora de labirintos intermináveis. Mais uma vez, o meu aplauso por "Livres Pensantes" voltar a Fernando Pessoa e à sua multivariada heteronímia, ao quanto de artístico a sua genealidade tem contagiado a obra de muitos outros escritores! Da sua obra, da do Fernando, ainda sabemos tão pouco!...Dele próprio, como pessoa, ainda sabemos muito, muito menos!... - Varela Pires

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