Este livro, “ O Mapa do Tesouro” de Egito Gonçalves, é todo ele uma obra de arte, desde a impressionante harmonia gráfica e o desenho de David de Almeida aos notáveis poemas em prosa de Egito Gonçalves, belíssimos pela originalidade imagética, pelo tratamento subtil dos temas do amor e da viagem, da descoberta do outro. Egito nunca exprimiu com tanta força e novidade o encantamento amoroso, o olhar dos amantes na mesma direcção, a figura da mulher como guia e como luz no percurso da existência.
A vitória do amor sobre a morte, o achamento desse estado de suprema euforia, di-lo Egito Gonçalves em muitos destes poemas e especialmente no que concretamente se refere à «ilha do tesouro». «A Solidão é uma paisagem árida, uma perdida ilha rochosa, onde cada um de nós é um país secreto no fundo do horizonte. O mapa do tesouro é o encontro com o outro, a descarga entre pólos que revela uma nova paisagem cujos elementos dispomos ao longo dos dias nesse jogo de olhares que pode fazer nascer flores carnívoras ou campinas suaves sobrevoadas pelo canto dos pássaros azuis. Só então sabemos como deter o inexorável.» Recensão de Urbano Tavares Rodrigues, in " Rol de Livros, Leitura Gulbenkian", 1998
”Beijo não é palavra de poema. É o raiar da madrugada, o anúncio de um dia longo, o final da tensão que ameaçava partir a corda: podemos escolher imagens, comparações, fazer literatura. Será sempre outra coisa, meu amor, o beijo do poema. É como o branco que dizem ser a fusão de todas as cores. Não se retira um beijo do poema, este é apenas a fotografia de alguns pormenores. Um beijo é o corpo que antes não existia e ali nasce, uma nova estrutura óssea que suporta um pulsar único, um aposento onde o esplendor apaga todas as lágrimas que conseguiram viver até chegar ali."
"As palavras são mágicas, sobretudo quando se proferem para afirmar o amor. A primeira vez que o fizeste, atravessaste a rua sob a chuva, pensando que eu ficaria no lugar, preso à música da afirmação. Enquanto entravas no carro, ligavas o motor e arrancavas, eu saí do meu corpo para te seguir. Passeámos de mãos dadas na orla de uma floresta de castanheiros, olhando os ouriços maduros e dourados por cima dos quais voavam aves que no momento não nos preocupámos em identificar."
«Os meus dedos percorriam os teus, falange, falanginha, falangeta, como se interrogasse as pétalas de um afirmativo malmequer. Para lá dos vidros, o som das nossas vozes apagava-se, marulhava nos nossos ouvidos como um oceano secreto contido numa concha. Outubro era um teclado, uma página aberta, um arbusto de veias».
"Entre o teu sono e o meu há um estreito corredor que ao olhar dos outros se apresenta como um simples espelho. Atravesso-o para encontrar os lábios que no sono me procuram, realizando-me como sombra amável que se transfigura no clima lunar de uma paixão que soube evitar os violentos tremores de terra. O sono é um país enevoado onde nos insinuamos, fingindo ser fantasmas, pássaros invisíveis, pelo prazer de criar um jogo no qual a meia-noite figura como simples referência de um beijo que une os dois seres que na noite profunda dormem um para o outro."
“Uma declaração de amor não é acontecimento de domínio público, uma baleia que vara na praia sob o sol dos desastres e convoca multidões, desalinhando hábitos quotidianos; uma declaração de amor é um acto de grande intimidade que ergue um véu transparente de onde brotam mel e pássaros azuis. As palavras directas ou indirectas, ditas ou escritas, suscitam a carícia única, irrepetível, a leve percussão que desenha no silêncio a imagem do que se ama. E assim terá de se guardar. Num lugar seguro onde os sismos não possam encontrar o mapa do tesouro.”
“Uma declaração de amor não é acontecimento de domínio público, uma baleia que vara na praia sob o sol dos desastres e convoca multidões, desalinhando hábitos quotidianos; uma declaração de amor é um acto de grande intimidade que ergue um véu transparente de onde brotam mel e pássaros azuis. As palavras directas ou indirectas, ditas ou escritas, suscitam a carícia única, irrepetível, a leve percussão que desenha no silêncio a imagem do que se ama. E assim terá de se guardar. Num lugar seguro onde os sismos não possam encontrar o mapa do tesouro.”
Egito Gonçalves, in “ O Mapa do Tesouro”, Editora Campo das Letras, 1998 , Colecção “O Aprendiz de Feiticeiro”
Lembrarem-nos Egito Gonçalves, e a sua obra poética, obra extensa, sensitiva, musical, tocada com as mãos, os olhos, com o escutar, exposta como um pranto longínquo permanente, é revivermos um poeta que nunca negou pousada ao Amor, mesmo quando este batia ao ferrolho da sua porta, fossem as horas "dessoradas" que fossem!... Nele, o amor da terra pôde mergulhar fundo nas belas e terríveis águas que todos respirámos. Egito aceitou sempre a poesia do tempo silencioso, das horas notívagas em que a palavra viva, transposta e errante, peregrina e geográfica, plena de subtilidade, provinda dos sentidos, as mesmas palavras que não adormeciam, as palavras que lhe enchiam a alma, nascidas a cada momento de sua curvilínea vida, uma vida que correu tão devagar (sem incomodar nada e ninguém..), correu como um rio cujas águas nunca tiveram pressa nem suscitaram turbulência, e procuraram soltarem-se por entre os calhaus, os escolhos do sofrimento. Porque um poeta sofre sempre, sofre muito!... Revivê-lo e sondar os meandros suaves da sua palavra poética, muito bela, reviver igualmente a sua obra literária é fazerem-nos mirar continuamente a estrada da sua Poesia. É que todos nós - de um modo geral -ao longo da extensa via láctea da nossa vida amorosa, por oblíquos caminhos tão secretos como autobiográficos, todos nós guardámos um mapa tolhido de muitos tesouros, cheio de locais onde o amor germinou e ainda germina, terra em que os amantes se encontram, se beijam e abraçam, se tocam em "carícias" repetidas, e em horas estáticas desfiam memórias de sensualidade e de luzes apolíneas em que o sexo foi fusão de sons, cores, cúmulo de gestos imparáveis. Como o imenso Rui Belo, Egito Gonçalves foi uma alma dotada de uma sensibilidade muito para além do comum, plena de tudo o que faltou inúmeras vezes a todos nós, em tantos momentos!... - V. P.
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