Didáctica
Uma noite por ano uma noite pelo menos
Assaltemos o céu e a Lua aprisionemos
Uma noite Uma noite Uma noite pelo menos
Armas Algemas Cães O que for necessário
Tragam-na dentro dum foguetão celular
E mantenham-na presa uma noite pelo menos
Interroguem então a prisioneira Lua
Não lhe poupem o corpo a nenhuma tortura
Uma noite por ano Uma noite pelo menos
Veremos se confessa o que nem nós sabemos
Chicoteiem-lhe o peito E fustiguem-lhe o ventre
Deixem-na toda em sangue uma noite pelo menos
É preciso que saiba os recursos que temos
É preciso que aprenda É preciso que a prendam
Uma noite por ano Uma noite pelo menos
David Mourão-Ferreira, Obra Poética 1948-1988,
Lisboa, Editorial Presença, 1996, 2,ª ed.
Assaltemos o céu e a Lua aprisionemos
Uma noite Uma noite Uma noite pelo menos
Armas Algemas Cães O que for necessário
Tragam-na dentro dum foguetão celular
E mantenham-na presa uma noite pelo menos
Interroguem então a prisioneira Lua
Não lhe poupem o corpo a nenhuma tortura
Uma noite por ano Uma noite pelo menos
Veremos se confessa o que nem nós sabemos
Chicoteiem-lhe o peito E fustiguem-lhe o ventre
Deixem-na toda em sangue uma noite pelo menos
É preciso que saiba os recursos que temos
É preciso que aprenda É preciso que a prendam
Uma noite por ano Uma noite pelo menos
David Mourão-Ferreira, Obra Poética 1948-1988,
Lisboa, Editorial Presença, 1996, 2,ª ed.
Notícia de David
por BAPTISTA-BASTOS
A última vez que o vi foi na Casa do Alentejo, num jantar de apoio à candidatura de Jorge Sampaio à Presidência da República. Não o reconheci, de imediato: o cancro devorava-o, era uma sombra do que fora. Ao lado, sua mulher, Pilar, e os dois mantinham o porte sereno e digno. Conversou, fumou cachimbo, bebeu uísque, no ritual cortês e delicado que o caracterizava. Um homem a sorrir à morte, e embora dilacerado pelo escândalo de saber do seu próprio fim, mantinha a discrição e o pudor. David Mourão-Ferreira, digo.
Lembrei-me do episódio, agora, que li, na revista dominical do Público, uma entrevista a seu filho. O grande poeta percorreu a vida com a elegância antiga que marca o destino dos que são modernos sem nunca deixar de ser clássicos. Há poucos desta estirpe. O filho, também David, como o pai e o avô, fornece comovente perfil de um homem complexo, solitário mas também povoado pela força de um querer no qual o amor procura o seu particular infinito. Na conversa, deixa pistas importantes, como a da religião e da conversão do pai, que a entrevistadora, acaso por distracção e impreparo, não soube aproveitar. Em 1979, fora iniciado no rito shintoista, numa época em que não cultuava nenhuma religião. Quando David, o filho, fala da pouca paciência que o pai tinha para com os neorealistas (embora fosse amigo, admirador e lúcido crítico de, por exemplo, Armindo Rodrigues, neorealista de raiz camoniana), seria oportuno falar-se da querela com Mário Dionísio.
A entrevistadora desconhecia o assunto, de que resultou uma cena de pancadaria, desencadeada por outro escritor, ao que parece alcoolizado. As lacunas são quase neutralizadas pelas declarações do entrevistado, homem notoriamente culto e inteligente, e pelas quais perpassa uma fina ironia. E remata dizendo que catalogar o pai como poeta do amor é não só redutor como desconhecimento de que a grande poesia dele é uma espécie de configuração da alma, e da secreta transcendência do ser humano. Uma procura de si em si.
Sem paciência para os neorealistas e enfadado com os surrealistas, cuja cartilha de expulsões e excomunhões detestava, David Mourão-Ferreira foi um cavaleiro de múltiplas soledades, sem servidões nem amos, cujo imenso talento, eloquência e impressionante cultura suscitavam invejas e ressentimentos. O costume.
Inimigos chamavam-lhe "o soneto engravatado." Um dia perguntei--lhe da alcunha. Ele: "O que em mim haverá de soneto tem pouco de engravatado; e o que, em mim, às vezes, há de engravatado não tem, em compensação, nada a ver com o soneto."
Não relia, há uns tempos, este meu amigo afectuoso. Revisitei os seus poemas, lidos, tanta vez, em voz alta, e reencontrei-me com um artista invulgar, para quem os valores da diversidade eram a questão central da existência num mundo cada vez mais flutuante e ausente na compostura.
Baptista–Bastos em Artigo de Opinião, publicado no "Diário de Notícias", em 28 Setembro de 2011
Poeta entre os maiores, grande investigador,Professor e crítico literário.
ResponderEliminarFoi o Urbano T. Rodrigues, felizmente ainda entre nós, que me apresentou O Professor David Mourão-Ferreira, numa das célebras e longínquas reuniões que se prolongavam pela noite adentro, num igualmente célebre 2º andar de um prédio "igual" a tantos outros prédios numa Rua... de Lisboa. (Me desculpem!...Não é ético ser mais discriminativo referindo-me a lugares, pois que ainda existem pessoas vivas que foram presença marcante nessas clandestinas reuniões, que a polícia política de Salazar perseguia...) Já muito tempo antes, o poeta e dramaturgo António Manuel Couto Viana me falara no David,como um homem cultíssimo, senhor de uma escrita e fala elegantes e correctas, sempre acessível aos mais novos. Quando o conheci, era eu estudante universitário, e o David estava afastado compulsivamente do Ensino por razões ideológico-políticas, e pude então comprovar que tudo quanto o Couto Viana me dissera era autêntico. David Mourão -Ferreira foi, depois de Afonso Lopes Vieira, e mais que este, o último e o mais brilhante Cavaleiro da Poesia Portuguesa, por esses tempos (e ainda os de hoje).Muito mais haveria a dizer sobre este Príncipe da Literatura... A morte através de uma neoplasia renal pôs ponto final na sua vida física. Porém,este é um espaço demasiado pequeno em termos dimensionais, e o que sobre ele acabo de escrever, um tão simples e despretensioso comentário sobre um Grande Português! David Mourão-Ferreira ainda está bem vivo, mesmo na sua finitude terrena!... - Varela Pires
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