Uma interpretação
ideológica de um soneto de Camões
por Eugénio Lisboa
“Todos
conhecem aquele belíssimo soneto de Camões, que começa assim: “Alma minha
gentil que te partiste”, seguindo-se-lhe treze versos, cada um mais belo do que
o anterior.
Tem havido o
mais variado leque de interpretações deste poema, que vale uma literatura,
incluindo a inevitável “interpretação” biografista, que vê, na “alma minha” uma
alusão à amante chinesa, morta afogada , no célebre naufrágio na foz do rio
Mekong. Nesse naufrágio, cujas circunstâncias, em pormenor, se desconhecem, Camões
teria salvo, a nado, OS LUSÍADAS, mas não conseguiu salvar da morte a sua
Dinamene. Até aqui, tudo bem. As teses biografistas têm o interesse que têm, embora não sejam
exactamente interpretações de um texto. Dizer que, sem o conhecimento
biográfico deste episódio, o soneto ficaria incompreensível, é um rotundo
disparate. O poema deve ser interpretado pelo que o poeta lá pôs e não pelas
circunstâncias que estiveram na origem da sua escrita.
Mas, à luz de
uma minha experiência recente, relacionada com o modo como alguns poemas meus
têm sido “interpretados” por ideólogos superaquecidos, estranho que a mesma
receita ideológica ainda não tenha sido aplicada ao imortal soneto de Camões.
Uma coisa deste gosto: Camões era europeu, branco; Dinamene era chinesa,
amarela. Amor, amor, raça aparte. Entre salvar uma inferior chinesa e OS
LUSÍADAS, o bardo não hesitou, exibindo um conhecido preconceito racista:
salve-se o manuscrito, pereça a chinesa. A partir daqui, o crítico ideológico
esquecia os achados poéticos, as lindas metáforas, a linguagem poética de uma
inventiva sem igual, e mergulhava, a fundo, nos malefícios das “descobertas”,
do racismo, do colonialismo, da exploração do homem pelo homem, do capitalismo
selvagem, dando Camões como um peão de forças malévolas e um precursor mal
avisado do racismo do século XXI. Por que não? As redes sociais andam cheias
deste tipo de sondagens. Vou terminar, contando uma história verdadeira, de que
tomei conhecimento, no meu tempo de estudante de engenharia. Vivia na Av.
Guerra Junqueiro, muito próxima do Instituto Superior Técnico. Frequentava
então uma Pastelaria Mexicana, que ainda existe, a qual era também frequentada
por um ideólogo da esquerda dura, obcecado com a ideologia e com Marx. Conta-se que, na sua primeira noite de
núpcias, quando finalmente se libertou dos amigos e se fechou no quarto com a
noiva, depois de se meter na cama com ela, debruçou-se carinhosamente sobre a
amada e perguntou-lhe: “Você já leu O CAPITAL, de Karl Marx?” Consta que o
casamento durou poucos dias e até se percebe porquê. Aquela pergunta cabia
tanto naquela circunstância, como o racismo cabia no imortal soneto de Camões.”
Eugénio Lisboa, em
14.08.2023
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