"(...)Lembrava quase tanto um navio quanto uma
casa. Colocada ali para resistir às tempestades, incrustava-se na ilha como se fosse parte integrante dela; mas de todas as janelas descortinava-se o mar e era muito arejada, de modo que não se sentia calor nem nas noites mais quentes. Pintada de branco para ficar bem fresca no
verão, podia-se avistá-la de longe, na Corrente do Golfo. Era o ponto culminante da ilha, com exceção da extensa plantação de altos pés de
casuarina, a primeira coisa que se enxergava ao se acercar da ilha por
via marítima. Logo depois da mancha escura das casuarinas acima da linha
do horizonte, via-se o vulto branco da casa. Aí então, à medida que se
chegava mais perto, a ilha emergia inteira, com os coqueirais, as cabanas
de madeira, a faixa branca da praia, e o verde da Ilha Sul se estendendo
ao fundo. Thomas Hudson nunca avistava aquela casa na ilha sem que ficasse
tomado por uma sensação de felicidade. Sempre a imaginava exatamente como
um barco. No inverno, quando soprava o vento norte e esfriava de fato,
ela era quente e confortável porque possuía a única lareira na ilha. Uma
vasta lareira aberta onde Thomas Hudson queimava sarrafos lançados à praia
pelas ondas.
Guardava-os numa pilha enorme, encostados à
parede do lado sul da casa. Estavam esbranquiçados de sol, cobertos de
areia trazida pelo vento, e afeiçoara-se tanto a vários pedaços que
até sentia ódio de ter que queimá-los. Mas depois das grandes tempestades
sempre surgiam outros na praia, e terminava achando divertido queimar
mesmo os pedaços de que mais gostava. Sabia que o mar traria novos e nas noites
frias sentava-se na ampla poltrona diante do fogo, lendo à luz do lampião
pousado na grossa mesa de tábuas, interrompendo a leitura para escutar o
noroeste soprando lá fora, o estrondo da rebentação, e contemplar os
enormes sarrafos esbranquiçados a arder.
Às vezes apagava o lampião e deitava-se em cima do tapete no chão, detendo-se a fitar as pontas coloridas que o sal marinho e a
areia desenhavam nas chamas enquanto a lenha ardia. Deitado, os olhos
nivelavam-se com a altura da madeira que queimava, tornando nítida a linha de
separação entre a chama e os sarrafos, o que o deixava ao mesmo tempo
triste e alegre. Toda a madeira que queimasse o afectava desse modo. Mas os
sarrafos trazidos pelo mar a arder ali no fogo causavam-lhe uma sensação que
não conseguia definir. Achou que talvez fosse erro queimá-los, uma vez que
gostava tanto deles; mas não tinha remorsos por causa disso.
Ao deitar-se no chão sentia-se protegido
contra o vento, embora, na realidade, o vento açoitasse até os cantos
inferiores da casa, a relva mais baixa da ilha, infiltrando-se pelas
raízes da vegetação rasteira da praia, pelos carrapichos e pela própria
areia. No chão, podia sentir a batida da rebentação tal como se lembrava
de ter sentido o disparo de poderosos canhões quando se jogava por terra
perto de uma peça de artilharia há muitos e muitos anos, quando ainda era
menino.
A lareira era uma coisa formidável; no inverno
e durante todos os outros meses contemplava-a com carinho, imaginando como
seria quando o inverno chegasse de novo. O inverno era a melhor de todas
as estações na ilha, e aguardava-o com impaciência o resto do ano
inteiro.”
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"(...)Lograra substituir quase tudo excepto os filhos, pelo trabalho e pela vida de actividade normal, regular, que edificara na ilha. Estava convencido de que conseguira com essa vida algo de perdurável que o fixaria. Agora, quando se sentia solitário e tinha saudades de Paris, lembrava-se de Paris em vez de ir até lá. Fazia o mesmo com toda a Europa, grande parte da Ásia e da África.
Lembrou do que Renoir dissera ao contarem-lhe que Gauguin fora para Taiti pintar. «Porque há-de ele ir gastar tanto dinheiro para ir pintar para tão longe quando se pinta tão bem aqui em Batignolles?» Em francês soava melhor: «quand on peint si bien aux Batignoiles», e Thomas Hudson concebia a ilha como o seu quartier no qual se instalara, travando conhecimento com os vizinhos e trabalhando tão assiduamente como trabalhara em Paris quando o jovem Tom era ainda bebé.
Algumas vezes deixava a ilha para ir pescar ao largo de Cuba ou visitar as montanhas no Outono. Mas arrendara o rancho que tinha comprado em Montana por, ali, a melhor época ser o Verão e o Outono, e agora era sempre no Outono que os rapazes tinham de voltar para a escola.
Ocasionalmente, via-se obrigado a ir a Nova Iorque para se avistar com o seu agente. No entanto, era mais frequente agora ser o seu agente a visitá-lo e a levar as telas para o norte consigo.
Tinha uma reputação bem firmada como pintor, e era respeitado tanto na Europa como no seu próprio país. Contratos de exploração de petróleo em terrenos que o avô possuíra garantiam-lhe proventos regulares. Esses terrenos tinham sido terras de pastagem, e ao serem vendidos retivera os direitos ao subsolo. Cerca de metade do rendimento era absorvido pela pensão que pagava às suas ex-mulheres, e o resto dava-lhe a segurança necessária para pintar conforme lhe apetecia sem quaisquer pressões de ordem comercial. Permitia-lhe também viver onde lhe dava na fantasia e viajar quando se sentia inclinado a isso.
Tivera êxito quase a todos os respeitos excepto na sua vida de casado, embora, na realidade o êxito nunca o houvesse preocupado muito. O que lhe interessava era a pintura e os filhos, e continuava apaixonado pela primeira mulher que despertara o seu amor. Amara muitas mulheres desde então e, por vezes, lá vinha uma ou outra ficar na ilha. Precisava de ver mulheres ao pé de si e acolhia-as bem durante algum tempo. Gostava de as ter ali, às vezes durante longo período. Mas, no final, ficava sempre satisfeito quando se iam embora, mesmo se gostava delas a valer. Disciplinara-se de forma a deixar-se de discussões com mulheres, e aprendera a arte de não se casar. Estas duas coisas haviam sido quase de tão difícil aprendizagem como instalar-se e pintar a um ritmo regular e bem ordenado. Mas aprendera a fazê-las, e a sua esperança era que essa aprendizagem tivesse sido permanente. Havia muito que sabia pintar, e estava convencido de que ia aprendendo sempre mais a cada ano que passava. Mas fora difícil aprender a assentar e a pintar disciplinadamente porque tinha havido na sua vida uma fase em que ele próprio não fora disciplinado. Nunca tinha sido verdadeiramente irresponsável, mas indisciplinado, egoísta e desapiedado, isso sim. Sabia-o agora, não por muitas mulheres lho terem dito, mas por o haver descoberto finalmente à sua custa. Resolvera então só ser egoísta na sua actividade de pintor, só ser desapiedado no seu trabalho, e disciplinar-se e aceitar a disciplina. "
Ernest Hemingway, in Ilhas na Corrente, Livros do Brasil
« Ilhas na Corrente, capítulo final na cronologia artística e humana de um grande escritor é, segundo a crítica, uma das obras mais invulgares que ficamos a dever ao autor de "Por Quem os Sinos Dobram", reunindo, num mesmo programa, alguns dos ingredientes que transformaram a arte narrativa de Hemingway numa das mais expressivas do nosso tempo. Roteiro da vida de um pintor desde os anos 30, sequelas trágicas do fim da segunda guerra mundial, centrado nas Caraíbas, é, afinal, um retrato do próprio autor já que une, numa trajectória única, as experiências do artista e do homem de acção, a exigência de disciplina íntima e de comportamento de um espectador da vida e de um interventor activo no que ela tem de mais trágico e absurdo. Algumas das personagens deste livro singular e belíssimo serão recordadas para sempre na galeria de caracteres que Hemingway nos legou.
Começando na década de 1930, "Ilhas na Corrente" narra o destino de Thomas Hudson, as suas experiências como pintor nas ilhas da corrente do golfo de Bimini e as suas actividades anti-submarinas no litoral de Cuba durante a Segunda Guerra Mundial.»
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