"Ulisses Enganando Polifemo”, de William Turner |
(A propósito de Camões)
por Eugénio Lisboa
"Um verso célebre do poeta
francês do século XVI, Joachim du Bellay, reza assim, na densidade austera da
sua infinita riqueza: “Feliz quem, como
Ulisses, fez uma boa viagem”. Na verdade
profunda que contém, o verso esconde um facto notório e algo perturbante: é que
a famosa odisseia de Ulisses esteve emperrada nove alongados anos, com o herói
encalhado nos braços sedutores de Calypso.
E, quando deles se libertou, foi menos para se dar de novo aos prazeres
da viagem do que para regressar, obediente e provavelmente cansado, a Ítaca e
se abandonar à rotina da vida doméstica (com, pelo meio, também é verdade, um
derradeiro urrah! de vigoroso guerreiro votado à chacina dos atrevidos
pretendentes de Penélope). Esqueçamos,
no entanto, como dizia a inesquecível Suze, de António Patrício, estes
“pormenores” e erijamos, sem escrúpulos de maior, Ulisses como símbolo da
viagem. Fazer como Ulisses uma boa
viagem! Quem não passou por sonhar isto,
sobretudo os da minha geração – que pouco ou nada viajava, antes de uma certa
idade – e os que, como eu, adolescentes, viviam confinados num Moçambique,
remoto e
esquecido, ainda que vivificado pelo sol e pelo Índico, omnipresentes, obsessivos e fecundos. Vivendo literalmente dentro do Índico, em que nos banhávamos diariamente, como quem carrega baterias, sentíamo-nos sensual e misticamente ligados aos mundos a que o mar – aquele mar – conduzia. “A voz do mar”, dizia a grande romancista norteamericana, Kate Chopin, “fala-nos à alma. O toque do mar é sensual, envolvendo-nos o corpo no seu abraço apertado e macio”. O mar, “cúmplice do desassossego humano”, como dizia Conrad, que nele viveu e sobre ele magistralmente escreveu, simultaneamente nos aplacava, nos seduzia e nos inquietava. Vivíamos nele e com ele, mas seria despropositado dizer que falávamos com ele de igual para igual. O mar acariciava-nos e fazia-nos ilimitadas promessas mas, por outro lado, sentíamos que nos ameaçava com a sua irresponsável enormidade. Os poetas sabem destas coisas, quero eu dizer que sabem vê-las e sabem dizê-las para que nós delas tenhamos, depois, mais clara consciência. Carl Sandburg, poeta audacioso dessa América desmedida e um pouco brutal, observava que “o mar fala uma língua que as pessoas educadas nunca repetem. É um colossal calão de abutre e não respeita coisa nenhuma.” Era nesse intemperado e temível calão, forte e selvaticamente poético, que o Índico, nos anos quarenta, nos fazia ameaças, mas nos aliciava também com inesgotáveis promessas. A alguns de nós ele prometia, sobretudo, uma viagem. Nesse tempo, não havia ainda Universidade naquelas margens do Índico em que se falava português. Estudar implicava mudar, isto é, viajar. Viajar, isto é, ir descobrir – ir ver, claramente vistos, outros horizontes, outros sóis, outras gentes. Ir fazer, em sentido inverso, grande parte da viagem que fizera Vasco da Gama em 1498 e Camões cantara nos Lusíadas em que os nossos quinze anos se tinham, quase deslumbradamente, iniciado O “largo mar”, “o longo mar”, “o duvidoso mar” e, também, hélas!, “o irado mar”, entre Lourenço Marques e o Cabo das Tormentas, e, depois, o resto, mais calmo, até Lisboa, ia ser nosso durante um mês de viagem. Nele iríamos saudável e, por vezes, penosamente, aprender e desaprender. Deixar lastro velho e ardido (preconceitos, crenças, falsos conhecimentos) e adquirir, ao sopro fresco do observado em primeira mão, conhecimentos novos. Enquanto líamos sobre a Europa nos romances que apaixonadamente devorávamos (O Lírio Vermelho oferecia-nos Florença, Os Thibault abriam-nos as portas de Paris, do mesmo modo que Lawrence nos ofertava a Inglaterra e o México, ou Panait Istrati os cardos do Baragan romeno, ou, ainda, Eça de Queirós nos iniciava em Lisboa e nos seduzia com Sintra), enquanto líamos, sonhávamos com a longa viagem que nos levaria da Ítaca lourenço-marquina à Europa onde lançaríamos o nosso cerco de que resultaria a conquista final e inevitável! Seria, como ensinava Gide, uma longa viagem de desinstrução que nos garantiria, subsequentemente, uma nova (mas também provisória) instrução. Toda a viagem – e a do Gama, nos Lusíadas e na realidade, não foi excepção – é simbolicamente, uma busca da verdade ou de uma verdade melhor, ou da sabedoria ou de uma sabedoria melhor, ou da paz, ou de um bom comércio ou da imortalidade ou de uma maior simplicidade ou simplificação das nossas vidas (Gide notava que ia muitas vezes viajar apenas para fugir ao peso dos seus bens). O viajar bom e produtivo é sempre um fugir à rotina, ao que já se sabe muito bem, ao onde se está demasiado bem. Viajar deve ser um abandono do que já nos não excita, uma desinstrução necessária a bem de uma nova instrução que nos recria e nos faz viver de novo. Nesse livro de um lirismo arrebatador, que perturbou e agitou jovens de todas as latitudes e longitudes do Globo terrestre, no final do século passado e sobretudo no primeiro quartel do nosso século – refiro-me a Les Nourritures Terrestres – André Gide proclamava com provocante despudor: “Enquanto outros publicam ou trabalham, eu passei três anos de viagem a esquecer, pelo contrário, tudo o que tinha aprendido de cabeça. Essa desinstrução foi lenta e difícil; foi-me mais útil do que todas as instruções impostas pelos homens e foi, verdadeiramente, o começo de uma educação”. Mais adiante, dirigindo-se a um discípulo imaginário, exorta-o nestes termos: “Nataniel, eu quero aprender o fervor. [...] não te demores ao pé daquilo que se parece contigo; não permaneças nunca, Nataniel. Desde que um ambiente se começou a parecer contigo ou tu com ele, deixou de ser, para ti, proveitoso. É preciso deixá-lo. Nada é mais perigoso para ti do que a tua família, do que o teu quarto, do que o teu passado.” Era este mesmo André Gide que afirmava ter escolhido como seu herói favorito não Ulisses – por causa de Ítaca que definitivamente o roubou à viagem – mas, sim, Sindbad, o marinheiro, de uma das histórias de Scheerazade, n’As Mil e Uma Noites; porque, conforme explicava Klaus Mann, na célebre biografia que consagrou ao autor das Nourritures, “Sindbad não tem Ítaca à sua espera, nem esposa, nem filho, nem cão. Nem existem nele sentimentos capazes de extinguir-lhe o fervor.”
esquecido, ainda que vivificado pelo sol e pelo Índico, omnipresentes, obsessivos e fecundos. Vivendo literalmente dentro do Índico, em que nos banhávamos diariamente, como quem carrega baterias, sentíamo-nos sensual e misticamente ligados aos mundos a que o mar – aquele mar – conduzia. “A voz do mar”, dizia a grande romancista norteamericana, Kate Chopin, “fala-nos à alma. O toque do mar é sensual, envolvendo-nos o corpo no seu abraço apertado e macio”. O mar, “cúmplice do desassossego humano”, como dizia Conrad, que nele viveu e sobre ele magistralmente escreveu, simultaneamente nos aplacava, nos seduzia e nos inquietava. Vivíamos nele e com ele, mas seria despropositado dizer que falávamos com ele de igual para igual. O mar acariciava-nos e fazia-nos ilimitadas promessas mas, por outro lado, sentíamos que nos ameaçava com a sua irresponsável enormidade. Os poetas sabem destas coisas, quero eu dizer que sabem vê-las e sabem dizê-las para que nós delas tenhamos, depois, mais clara consciência. Carl Sandburg, poeta audacioso dessa América desmedida e um pouco brutal, observava que “o mar fala uma língua que as pessoas educadas nunca repetem. É um colossal calão de abutre e não respeita coisa nenhuma.” Era nesse intemperado e temível calão, forte e selvaticamente poético, que o Índico, nos anos quarenta, nos fazia ameaças, mas nos aliciava também com inesgotáveis promessas. A alguns de nós ele prometia, sobretudo, uma viagem. Nesse tempo, não havia ainda Universidade naquelas margens do Índico em que se falava português. Estudar implicava mudar, isto é, viajar. Viajar, isto é, ir descobrir – ir ver, claramente vistos, outros horizontes, outros sóis, outras gentes. Ir fazer, em sentido inverso, grande parte da viagem que fizera Vasco da Gama em 1498 e Camões cantara nos Lusíadas em que os nossos quinze anos se tinham, quase deslumbradamente, iniciado O “largo mar”, “o longo mar”, “o duvidoso mar” e, também, hélas!, “o irado mar”, entre Lourenço Marques e o Cabo das Tormentas, e, depois, o resto, mais calmo, até Lisboa, ia ser nosso durante um mês de viagem. Nele iríamos saudável e, por vezes, penosamente, aprender e desaprender. Deixar lastro velho e ardido (preconceitos, crenças, falsos conhecimentos) e adquirir, ao sopro fresco do observado em primeira mão, conhecimentos novos. Enquanto líamos sobre a Europa nos romances que apaixonadamente devorávamos (O Lírio Vermelho oferecia-nos Florença, Os Thibault abriam-nos as portas de Paris, do mesmo modo que Lawrence nos ofertava a Inglaterra e o México, ou Panait Istrati os cardos do Baragan romeno, ou, ainda, Eça de Queirós nos iniciava em Lisboa e nos seduzia com Sintra), enquanto líamos, sonhávamos com a longa viagem que nos levaria da Ítaca lourenço-marquina à Europa onde lançaríamos o nosso cerco de que resultaria a conquista final e inevitável! Seria, como ensinava Gide, uma longa viagem de desinstrução que nos garantiria, subsequentemente, uma nova (mas também provisória) instrução. Toda a viagem – e a do Gama, nos Lusíadas e na realidade, não foi excepção – é simbolicamente, uma busca da verdade ou de uma verdade melhor, ou da sabedoria ou de uma sabedoria melhor, ou da paz, ou de um bom comércio ou da imortalidade ou de uma maior simplicidade ou simplificação das nossas vidas (Gide notava que ia muitas vezes viajar apenas para fugir ao peso dos seus bens). O viajar bom e produtivo é sempre um fugir à rotina, ao que já se sabe muito bem, ao onde se está demasiado bem. Viajar deve ser um abandono do que já nos não excita, uma desinstrução necessária a bem de uma nova instrução que nos recria e nos faz viver de novo. Nesse livro de um lirismo arrebatador, que perturbou e agitou jovens de todas as latitudes e longitudes do Globo terrestre, no final do século passado e sobretudo no primeiro quartel do nosso século – refiro-me a Les Nourritures Terrestres – André Gide proclamava com provocante despudor: “Enquanto outros publicam ou trabalham, eu passei três anos de viagem a esquecer, pelo contrário, tudo o que tinha aprendido de cabeça. Essa desinstrução foi lenta e difícil; foi-me mais útil do que todas as instruções impostas pelos homens e foi, verdadeiramente, o começo de uma educação”. Mais adiante, dirigindo-se a um discípulo imaginário, exorta-o nestes termos: “Nataniel, eu quero aprender o fervor. [...] não te demores ao pé daquilo que se parece contigo; não permaneças nunca, Nataniel. Desde que um ambiente se começou a parecer contigo ou tu com ele, deixou de ser, para ti, proveitoso. É preciso deixá-lo. Nada é mais perigoso para ti do que a tua família, do que o teu quarto, do que o teu passado.” Era este mesmo André Gide que afirmava ter escolhido como seu herói favorito não Ulisses – por causa de Ítaca que definitivamente o roubou à viagem – mas, sim, Sindbad, o marinheiro, de uma das histórias de Scheerazade, n’As Mil e Uma Noites; porque, conforme explicava Klaus Mann, na célebre biografia que consagrou ao autor das Nourritures, “Sindbad não tem Ítaca à sua espera, nem esposa, nem filho, nem cão. Nem existem nele sentimentos capazes de extinguir-lhe o fervor.”
Sindbad era, em suma, a
disponibilidade absoluta para a viagem, a aventura – a aprendizagem. Como a marinhagem de Vasco da Gama, que se
fez ao mar disponível para aprender do que seus olhos vissem “claramente
visto”, em flagrante desrespeito da cultura oficiosa que Aristóteles por tantos
séculos legara, assim nós, ainda que a medo, largávamos em Lourenço Marques e
caminhando em sentido inverso, casa, quarto, família, passado e cão – ao
encontro de conhecimentos novos que pudéssemos ver claramente vistos. Equipados unicamente de abertura de espírito,
audácia e olhos, os marinheiros do Gama exercitavam-se, com orgulho quase
triunfalista e não pouca euforia, a ver os fenómenos que a natureza
generosamente lhes propiciava:
Vi, claramente visto, o lume
vivo
Que a marítima gente tem por
santo,
Em tempo de tormenta e vento
esquivo,
De tempestade escura e
triste pranto.
Não menos foi a todos
excessivo
Milagre, e cousa, certo, de
alto espanto
Ver as nuvens do mar, com
largo cano,
Sorver as altas águas do
Oceano.
Neste orgulho de confiar no
que os olhos viam – o Renascimento começava a estar em vigor – Camões põe na
boca do Gama, em pouquíssimas estrofes, nada menos que oito vezes o
verbo ver. Ver, acreditar no que
se via e não no que diziam as escrituras (fossem elas religiosas, filosóficas
ou científicas) tornava-se, por fim, postura normal do cientista ou do
estudioso tout-court. Ver, antes de
sentenciar. Por isso observou Bertrand
Russell, alguns séculos depois e com não pouco humor, que Aristóteles teria
podido evitar a afirmação de que as mulheres têm menos dentes do que o homem,
pelo expediente fácil de pedir à Senhora Aristóteles que abrisse a boca. O Gama e os seus marinheiros não pediam
exactamente à natureza que lhes abrisse a boca, mas solicitavam-lhe, isso sim,
que se abrisse, com os seus infinitos segredos, à perscrutação que sobre ela, gostosa
e assombradamente, iam exercitando.
Fazer confiança na observação é um tópico que Camões canta com vigor e
algum panache: na boca do Gama, põe estas palavras que quase intersectam um
justificado orgulho ou até arrogância:
Eu o vi certamente (e
não presumo
Que a vista me
enganava) levantar-se
No ar um vaporzinho e sotil
fumo
E, do vento trazido,
rodear-se;
De aqui levado um cano ao
polo sumo
Se via, tam delgado,
que enxergar-se
Dos olhos facilmente não podia;
Da matéria das nuvens
parecia.
...”E não presumo que a vista me enganava”. Eis o emblema triunfal de um novo homem: o
homem do saber de experiências feito, o homem que confia no que a natureza lhe
diz e não no que lhe sopram as escrituras e... os inquisidores. Há no canto de Camões um petulante e matinal
desafio às chamadas “autoridades”:
Vejam agora os sábios na
escritura
Que segredos são estes da
Natura!
Se os antigos filósofos, que
andaram
Tantas terras por ver
segredos delas,
As maravilhas que eu passei
passaram,
A tam diversos ventos dando
as velas,
Que grandes escrituras que
deixaram!
Que influição de signos e de
estrelas,
Que estranhezas, que grandes
qualidades!
E tudo sem mentir, puras
verdades.
Nos Lusíadas, Camões canta a história de Portugal, por intermédio de
Vasco da Gama que a conta ao Rei de Melinde, mas canta, sobretudo – e com que
energia, claridade, alegria e abençoada arrogância – o nascimento de um homem
novo e de um mundo novo – a exigirem cuidados de manipulação carinhosa e de
cautelosa gestão de que o honrado velho do Restelo duvidara já que fôssemos
totalmente capazes. O velho do Restelo
e, com o decorrer do tempo, certamente, o próprio Camões. Um império se fundou que, melhor ou pior, foi
durando. Mas a decadência instala-se
cedo. Sobrecarregadas de produtos, de ganância
e do frenesi de enriquecer depressa e mal, mal mantidas e superficialmente
reparadas, as naus da História Trágico-Marítima indicam que o fim do Império
começara cedo – a dar razão ao “honrado velho” – e se foi arrastando por quase
quatro séculos: morrer, sim, mas devagar, emblematizara D. Sebastião que, pelos
vistos, era louco mas não era parvo...
No “Camões na Ilha de Moçambique”, escrito em 20 de Julho de 1972, de
visita à “Isle Joyeuse”, Jorge de Sena pinta já, na altura do interrompido
regresso à pátria do poeta d’Os Lusíadas,
o início da decadência, a mesquinha pelintrice de um império mal gerido e mal
“fichu”, em que os vadios e pedintes comem d’amigos ou das migalhas parcas que
o Rei vai, apesar de tudo, deixando cair...:
Não é de bronze, louros na
cabeça,
nem no escrever parnasos,
que te vejo aqui.
Mas num recanto em cócoras
marinhas,
soltando às ninfas que
lambiam rochas
o quanto a fome e a glória
da epopeia
em ti se digeriam. (...)
Embora com a pátria
morrendo, o poeta, em 1580, a sua obra foi ficando e inspirando outros poetas,
do mesmo passo que o império, com mais ou menos sobressaltos de vida
artificial, se foi finando: as suas duas finais e minúsculas parcelas em breve
se irão para novas vidas e novos destinos.
Mas os impérios são uma coisa e quem os canta outra muito
diferente. Camões tem ficado, no mundo
de fala portuguesa, como referência capital.
Tenho encontrado, por todo o mundo, em África, no Brasil, na América,
gente não portuguesa que recita, de cor e com paixão, estrofes dos Lusíadas, sonetos, canções, odes do
grande poeta português. No fundo, todo o
grande poeta de língua portuguesa sofre, saudavelmente, da angústica de não ser
Camões: uns tentam igualá-lo ou superá-lo, do mesmo passo que ensaiam
diminui-lo, com qualificativos redutores;
outros julgam tê-lo, de facto, igualado ou superado: a paranóia é a
virtude cartesianamente mais bem distribuída – mais ainda do que o bom senso,
de que é saborosa antípoda... Fernando Pessoa, por exemplo, imaginou-se
supra-Camões, sugerindo, contraditoriamente, não ser isso grande feito, porque
o “italianizado” autor de “Alma Minha” pouco mais lhe merecia do que
desprezo; Jorge de Sena ter-se-á mesmo
perguntado se tal projecto –supra-camonear-se – seria sequer digno da sua (de
Sena) magnitude; Régio, que admirava sem reservas o bardo renascentista
seguiu-lhe, simplesmente, e sem bravata, o estro e a toada, nas oitavas
escaldantes da “Sarça Ardente”:
Assim, mãe, mãe de enigmas e
de assombros,
Natureza!, me achei a ti
alçado;
Assim, por entre os cúmulos
e escombros
Dos teus cenários, me perdi,
jogado;
E assim, mãe, me surgiste, o
azul aos ombros,
Ofertando e premindo o seio
inchado
De aragens, néctares,
hálitos, eflúvios,
Himalaias, Atlânticos,
Vesúvios...
Rui Knopfli, moçambicano da Terra da Boa Gente,
menos atrevido, mais modesto, abertamente fascinado pelo bardo de Sôbolos Rios, limitou-se a querer prolongá-lo
para além da glória até ao momento exacto do fim, num Roteiro melancólico da
Ilha de Moçambique, que nos entregou como quem se despede do Império e da sua
intoxicante vastidão (que criticou mas amou) e da vida, de que nunca gostou por
aí além:
Uma humidade escura
[diz, referindo-se à Ilha] e pegajosa, alastrará
de
novo
sobre o teu dorso de brancos
e amarelos, desenhando
nele estranhos, esquálidos
arquipélagos fantásticos.
A gangrena e a lepra do
tempo minarão
encarniçadamente o teu
arcaboiço atarracado,
modelando-te à imagem e
semelhança do bizarro
solo osteoporoso em que –
memória cristalizada –
repousas entorpecida de mar
e ausência,
esmerilado e exacto
monumento à vã cobiça
aos erros graves e à
grandeza desmedida que os gerou.
Sob a metálica indiferença
de um céu anil,
porto de olvido na rota
perdida das Índias,
volverás assim um
ressentimento da areia,
soluço de pedra ao sabor da
monção.
Assim cantam os grandes
poetas o nascimento, crescimento, decadência e morte dos impérios: morrem as
estruturas materiais mas salva-se o canto.
De resto, dizia já o velho Mestre de Santiago, da grande peça de Montherlant,
que “as colónias são feitas para serem perdidas. Nascem com a cruz da morte estampada na
fronte”. A poucos meses de se desligarem
de Portugal as duas minúsculas parcelas de um império que foi grande, mesmo
quando mal governado, e atracadas que forem as naus portuguesas no cais do
regresso definitivo, restar-nos-á fazermos como os marinheiros do Gama, que se
foram desinstruindo para melhor se instruirem de fresco, e desaprendermos todo
um modo de viver e estar no mundo para podermos aprender uma nova maneira de
abrirmos espaço à nossa volta – um espaço que não será físico mas espiritual,
cultural, científico – e mais fraterno.
Arrumadas as caravelas no museu do património de que não temos só que
nos envergonhar – porque muito há de positivo e até de grande a celebrar -, compete-nos
aprender a viajar noutro veículo que herdámos, com um esplendor nunca depois
excedido, de Camões – a língua portuguesa, que ele manipulou com astúcia,
subtileza, inteligência, intuição e – não sejamos modestos – génio e inventiva
e emoção, dela fazendo um instrumento de peculiar eficácia com que nós e outros
que por esse mundo visitámos pudéssemos explorar o nosso comum e vário
assombro: aquele assombro que é motor de arranque para tudo quanto o homem tem
produzido de inconfundivelmente grande. Se
Camões outra coisa não fosse – e foi um grande e inimitável poeta, isto é, um
promotor e decifrador de espantos – ficaria sempre como o patrono privilegiado
de uma língua que só é grande na medida em que é partilhada e trabalhada e
saborosamente modificada por tantos que se distribuem pelas mais desvairadas
latitudes e longitudes, fecundados por sóis diferentes e batidos por ventos
diversos.
Em três versos densos e
tersos, o poeta António Ferreira, contemporâneo de Camões, cometeu à língua
portuguesa, o seguinte e audacioso caderno de encargos:
Floresça, fale, cante,
ouça-se e viva
a portuguesa língua, e lá
onde for
Senhora vá de si, soberba e
altiva.
Em memória de Camões e a
pensar nos que hoje, em todo o mundo, dele herdam o esplendor da língua, resta-me
desejar que o mandato de António Ferreira possa ter, pelos séculos dos séculos,
cabal cumprimento.
Eugénio Lisboa, Junho de 1999
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