O
mito do império euro-asiático que justifica a guerra
por José Couto Nogueira
“Os euro-asiáticos não
tiveram uma vida fácil até à chegada ao poder de Vladimir Putin, um oficial do
KGB saudoso do poder soviético e desejoso de fazer voltar a Rússia ao seu
destino histórico. Deram-lhe a justificação ideológica para exercer o poder e,
sobretudo, para iniciar um novo processo de expansão a partir de Moscovo.
Todos os opinadores,
académicos, jornalísticos ou simplesmente espectadores, tentam responder à
pergunta fundamental: o que se passa na cabeça de Putin? Será um narcisista, um
nacionalista ressabiado, ou um louco? Mas Putin, seja qual for a sua persona,
representa a actualidade de uma ideia secular, o euro-asianismo.
Euro-asianismo? Quem
ouviu falar deste conceito? No entanto, aberta ou sub-repticiamente, as teorias
euro-asiáticas influenciaram toda a História da Rússia, subjacentes aos quatro
regimes que o país conheceu, o czarismo, o comunismo, a (breve espécie de)
democracia e, agora, a república ditatorial.
Putin pode ter
motivações pessoais – o seu próprio poder e a reconstituição do poder da Rússia
estalinista – e um perfil psicológico mórbido, mas representa a continuação de
uma ideia imperial que vem do tempo dos czares.
Por detrás da vaidade,
Putin tem ideias concretas sobre o seu papel na História da Rússia e, por
extensão, do Mundo. Há quem lhe chame de “Kremlin centrismo” e, na actualidade,
de “putinismo”; basicamente, o conceito é que Moscovo deve ter um papel central
na política e na ideologia internacionais, contrariando a decadência
civilizacional representada pela Europa e o domínio militar dos Estados Unidos.
Vários intelectuais
teorizaram sobre este conceito, nomeadamente Lev Gumilyov (1912-1992),
Alexander Prokhanov (n. 1938) e Aleksandr Dugin (n.1962), entre outros que
seria entediante citar.
Em termos de leitura da
História, esta corrente acredita, primeiro, que a situação geográfica de
Moscovo a coloca no centro do continente euro-asiático e, segundo, que os
russos e russófilos têm um papel fundamental a defender os valores autocráticos
e deístas que são a única garantia de sobrevivência da Civilização.
(Pensei bem antes de
usar o adjectivo “deísta”, porque a teoria ultrapassa o conceito de “cristão”,
embora o inclua. Contudo, é uma corrente abertamente anti-semita e anti-muçulmana.)
Nesta ordem de ideias,
o perigo principal vem da Europa, porque rejeita qualquer influência da Rússia
e porque criou uma cultura liberal e construiu uma sociedade de abundância que
são extremamente atraentes. É o diabo sedutor da decadência, que vive no luxo e
permite todos os comportamentos.
Os Estados Unidos
também são o inimigo, por várias razões; protegem a decadência europeia com o
seu poderio militar, e impõem ao mundo o conceito degenerado da democracia,
tentando cercar e conter a expansão das boas ideias civilizacionais
centralizadas no Kremlin.
A realidade inevitável
do Grande Império Euro-Asiático tem sido contrariada, ao longo dos séculos,
pela formação de Estados independentes e, depois de 1789, imbuídos duma
filosofia igualitária e permissiva que vê o euro-asianismo como uma selvajaria
autoritária e regressiva.
Se pensa que estou a
exagerar nesta visão apocalíptica, tente ver a televisão russa (o que é muito
difícil actualmente, mas aparece irregularmente nas redes sociais) os debates
entre os defensores da grande Rússia e da integração da Europa – a Ucrânia é
apenas o começo – na ordem social “correcta”. Vivem num mundo paralelo
mirabolante.
Se percebe francês,
leia o artigo de Laure Mandeville, jornalista especializada no Leste europeu e
que foi corresponde do jornal “Le Figaro” em Moscovo, entre 1997 e 2000. Ela
relata em pormenor estes argumentos surreais e violentos a que os russos são
expostos diariamente. Um exemplo: “O estalinismo não foi um acidente, mas antes
um elemento orgânico do nosso destino de potência global”, escreveu o
jornalista Pastoukhov na Novaia Gazeta.
Ou seja, esta filosofia
ultrapassa as questões de regime. Estaline foi apenas um elo na cadeia de
expansão do Império Euro-Asiático, não interessa se usou o comunismo como
método. A Rússia estava no bom caminho, afirmando-se como potência de peso
mundial e, através do Comintern, espalhando as boas ideias pelos países
capitalistas decadentes. O facto de o regime soviético ser anti-capitalista não
passava de um capítulo no percurso; na realidade o que interessava era a
expansão do império. Em geral, os pensadores euro-asiáticos não são, ou não
foram, comunistas. Gumilyov esteve preso décadas e sofreu todas as agruras de
quem vivia sob o poder de Estaline e não pensava em conformidade.
Os euro-asiáticos não tiveram uma vida fácil até à chegada ao poder de Vladimir Putin, um oficial do KGB saudoso do poder soviético e desejoso de fazer voltar a Rússia ao seu destino histórico. Deram-lhe a justificação ideológica para exercer o poder e, sobretudo, para iniciar um novo processo de expansão a partir de Moscovo.
Pastoukhov e outro jornalista, Dmitri Bykov, publicaram artigos anunciando o nascimento duma forma de “fascismo neoestalinista” capaz de desencadear uma guerra civil contra os russos “europaisados” que não concordavam com a orientação putinista, ou seja, um novo terror. Na agência de informação oficial russa, a RIA Novosti, um artigo propõe que a Ucrânia seja “desnazificada e des-europeinisada” (a palavra não existe, mas percebe-se). Os dirigentes devem ser “liquidados” e uma grande parte da população, que é constituída por “nazis passivos”, desejosos de ser independentes e europeus, devem ser “castigados” para “expiar os seus pecados contra a Rússia”.
É verdade, estas coisas foram escritas, são ditas e publicadas diariamente.
Quanto à miséria em que vive a generalidade do povo russo, é porque decidiram sacrificar o seu bem-estar em nome do destino histórico do país. A verdade é que as sondagens mostram que a grande maioria dos russos está ao lado de Putin e a sua popularidade aumentou desde que começou a invasão da Ucrânia. Poderia dizer-se que é porque só têm acesso à propaganda oficial; contudo, há outro valor que os anima: o reconhecimento do seu país como uma potência capaz de subjugar os ingratos que ousaram sair da sua esfera de influência.
Pode acreditar-se no destino inevitável do império euro-asiático, ou pode achar-se que estão todos malucos; a verdade, real e evidente, é que a máquina da História está em andamento e não vai por um caminho jovial e bucólico. As teorias imperiais – há outras, como sabemos – são mirabolantes como teorias, mas quando começam a ser praticadas só trazem desgraça e sofrimento, tanto para as vítimas como para os agressores.
O Armagedão não é uma profecia aterradora; é a realidade perante os nossos olhos.”
Os euro-asiáticos não tiveram uma vida fácil até à chegada ao poder de Vladimir Putin, um oficial do KGB saudoso do poder soviético e desejoso de fazer voltar a Rússia ao seu destino histórico. Deram-lhe a justificação ideológica para exercer o poder e, sobretudo, para iniciar um novo processo de expansão a partir de Moscovo.
Pastoukhov e outro jornalista, Dmitri Bykov, publicaram artigos anunciando o nascimento duma forma de “fascismo neoestalinista” capaz de desencadear uma guerra civil contra os russos “europaisados” que não concordavam com a orientação putinista, ou seja, um novo terror. Na agência de informação oficial russa, a RIA Novosti, um artigo propõe que a Ucrânia seja “desnazificada e des-europeinisada” (a palavra não existe, mas percebe-se). Os dirigentes devem ser “liquidados” e uma grande parte da população, que é constituída por “nazis passivos”, desejosos de ser independentes e europeus, devem ser “castigados” para “expiar os seus pecados contra a Rússia”.
É verdade, estas coisas foram escritas, são ditas e publicadas diariamente.
Quanto à miséria em que vive a generalidade do povo russo, é porque decidiram sacrificar o seu bem-estar em nome do destino histórico do país. A verdade é que as sondagens mostram que a grande maioria dos russos está ao lado de Putin e a sua popularidade aumentou desde que começou a invasão da Ucrânia. Poderia dizer-se que é porque só têm acesso à propaganda oficial; contudo, há outro valor que os anima: o reconhecimento do seu país como uma potência capaz de subjugar os ingratos que ousaram sair da sua esfera de influência.
Pode acreditar-se no destino inevitável do império euro-asiático, ou pode achar-se que estão todos malucos; a verdade, real e evidente, é que a máquina da História está em andamento e não vai por um caminho jovial e bucólico. As teorias imperiais – há outras, como sabemos – são mirabolantes como teorias, mas quando começam a ser praticadas só trazem desgraça e sofrimento, tanto para as vítimas como para os agressores.
O Armagedão não é uma profecia aterradora; é a realidade perante os nossos olhos.”
Artigo publicado em Sapo 24, 16.04.2022
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