I
Marx e Dostoiewski
por Alberto Moravia
" Tomemos por exemplo, o melhor e mais famoso dos romances de Dostoiewski: Crime e Castigo. Esta obra-prima será por muito tempo uma chave indispensável para se compreender tudo quanto aconteceu na Rússia e na Europa nos últimos cinquenta anos. Quem é Raskolnikov? Um intelectual anterior ao marxismo, indignado com as condições de injustiça social e de miséria abjecta da Rússia czarista, decidido a praticar uma acção demonstrativa, simbólica, contra estas condições . Raskolnikov não havia lido Marx e admirava Napoleão, modelo, para todo o século XIX, do super-homem; mas é sintomático que, ao contrário do stendhaliano Julien Sorel, outro admirador de Napoleão, ele não sonhasse com a grandeza mas sim com a justiça. E que o seu ódio se dirigisse contra um usurária, ou seja contra o caso limite da exploração do homem, segundo a fórmula marxista. Quem é pois a usurária? É a burguesia europeia que guarda na pasta os títulos industriais, fruto do esforço operário, que vive de rendas sobre o proletariado nacional e colonial, e tudo isso sem se dar conta, com consciência tranquila. É um símbolo, em suma, não muito diferente , no fundo da figura convencional do banqueiro da sátira antiburguesa, gordo e de barriga cheia, como chapéu alto e pasta , a pança enorme envolta num colete branco, as mãos cheias de anéis faiscando raios.
Raskolnikov, embora não tendo lido Marx e considerando-se um super-homem para além do bem e do mal , era também já, em embrião, um comissário do povo; e de facto os primeiros comissários do povo surgiram daquela mesma classe da « inteligenzia» à qual pertencia Raskolnikov e possuíam as mesmas ideias , a mesma sede de justiça social, a mesma terrível coerência ideológica , a mesma inflexibilidade na acção. E o dilema de Raskolniov é o mesmo dos comissários do povo e de Estaline: « Para o bem da humanidade é lícito ou não matar a velha usurária ( ler-se: liquidar a burguesia)? » Portanto, porquê tanta aversão por parte dos comunistas contra Dostoiewski?
A razão é muito simples. O ódio de Raskolnikov contra a usurária tem uma origem cristã. Este ódio na realidade é o ódio da Idade Média cristã contra o negócio e o lucro , a inconciliabilidade do Evangelho com a banca e as percentagens do juro. Este ódio, esta inconciliabilidade colocaram durante séculos a banca e o comércio nas mãos dos judeus até ao dia em que os povos cristãos da Europa ( e primeiro de todos, o italiano) se aperceberam de que era possível ser-se banqueiro e comerciante e, ao mesmo tempo, boa gente temerosa de Deus, em paz consigo própria e com a religião. Mas Raskolnikov pertencia , como de resto os comissários do povo e Estaline, a um país ainda medieval no qual a banca e o comércio se encontravam na mão de restritos grupos sociais e raciais , um país atrasado, de camponeses agarrados a um cristianismo ainda primitivo e místico. Assim, para Raskolnikov, a banca e o comércio são a usura, e a burguesia europeia e russa que pratica a usura , a usurária; então, é necessário matar a usurária ou seja, liquidar a burguesia.
Mas neste ponto as duas estradas , até aqui unidas, de Dostoiewski e dos marxistas , bifurcam-se: « Eliminemos a usurária e vamos para a frente. Depois da morte da usurária começará uma nova sociedade sem classes nem usura. A criação dessa sociedade justifica amplamente o assassínio da usurária.» Em vez disso, Dostoiewski, que se manteve cristão, depois de nos ter conduzido pela mão através de todas as fases do delito que sem dúvida havia meditado, acarinhado e aprovado mil vezes no seu coração, com um súbito volta-face, desaprova repentinamente Raskolnikov ou seja, os marxistas, isto é , Estaline , e diz: «Não , não é lícito matar, mesmo que seja por bem da humanidade. Cristo disse: não matarás.» E de facto Raskolnikov arrepende-se, lê o Evangelho juntamente com Sónia. Dostoiewski envolve o fim do seu romance numa aura mística. : « Aqui começa uma nova história, a história da renovação gradual de um homem, a história da sua gradual regeneração, da sua passagem gradual de um mundo para outro, do seu progresso para uma nova realidade até ali ignorada .» Os marxistas em vez disso, teriam concluído: «Aqui começa a revolução.»
O desvio entre Dostoiewski e os marxistas é devido a uma consideração diferente do que é o mal. Para os marxistas o mal é a usurária, ou seja a burguesia; Dostoiewki , tendo primeiramente aceite esta tese, repudia-a e chega à conclusão cristã de que o mal não é tanto a usurária quanto o meio usado, isto é a violência. Este mal de Dostoiewski no romance, não é somente representado pela morte violenta da usurária, mas também e sobretudo pela outra, da inocente e piedosa Lizaveta, irmã da usurária, que Raskolnikov mata, para suprimi uma testemunhado seu crime. Afinal para os marxistas , na realidade omal não existe desde que se trate unicamente de um mal social que pode ser liquidado com a revolução. Em vez disso, para Dostoiewwski o mal existe como facto individual no coração de cada homem e exprime-se exactamente nos meios violentos dos quais se serve a revolução. Os marxistas lavam com a justificação histórica e social mesmo as consciências mais negras , Dostoiewski nega esta lavagem e afirma a existência ineliminável do mal."
Alberto Moravia, in Um mês na U.R.S.S., Edição Livros do Brasil, Lisboa, pp.15,16,17, 18
Nota
Alberto Moravia fez uma viagem à U.R.S.S. que condensou no livro que acabámos de assinalar. No primeiro capítulo , relata a visita à casa do escritor Fiódor Dostoiewski , em Leninegrado, actualmente São Petersburgo, a cidade que este grande escritor russo considerava a "mais abstracta e intencional em todo mundo". Uma cidade que foi berço de poetas , escritores , dramaturgos como Alexandre Pushkin, Nikolai Gogol, Alexandre Blok , Osip Mandelstam. Tal como Dostoiewsk, há outros grandes nomes que não nascidos em São Petersburgo , aí viveram e morreram , de que é exemplo o famoso compositor Piotr Ilitch Tchaikovsky. Quem visita esta cidade na actualidade , encontra sumptuosas obras arquitectónicas , mas também indeléveis marcas do rasto de valiosos intelectuais.
No início do primeiro capítulo deste livro, Alberto Moravia explica as razões da visita à casa de Dostoievski, escritor que muito admirava: "Uma mulher de meia-idade debruça-se de uma das escadas e pergunta-nos se queremos visitar o apartamento no qual habitou , por muito tempo, Dostoiewski.
Respondemos-lhe que viemos para isso e seguimo-la escada acima . É uma escada ampla, de desenho brutal e sinistro: paredes enegrecidas manchadas de humidade (...). A escada é sombria , de uma tristeza atroz, e estamos na Primavera.
(...) Por que razão parei eu a descrever esta escada? Porque esta é a escada pela qual ia e vinha Dostoiewski, que habitou durante anos este casarão; mas é também a escada pela qual ia e vinha o herói de Dostoiewski, Raskolnikov, antes e depois do assassínio da usurária. Não só , porque estou aqui acompanhado de dois estudiosos de Dostoiewski, os quais me informam de que esta é sem dúvida a casa na qual habitava Raskolnikov; embora sendo ao mesmo tempo aquela em que habitava o autor de Crime e Castigo. Noutros termos, a identificação de Dostoiewski com Raskolnikov foi completa, colocou Raskolnikov no próprio apartamento, mesmo no próprio quarto, fê-lo mover-se pelas mesmas escadas e de um modo geral por todos os lugares que ele próprio frequentava, naquele tempo, em Petroburgo. "
DOSTOIEVSKI, A MAIOR PROFUNDIDADE DE UMA ALMA!
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