Eugénio Lisboa é um dos mais talentosos e insignes intelectuais da actualidade. Escritor, ensaísta, cronista, memorialista, crítico literário, poeta tem uma vasta e variada obra. Detentor de uma apurada e prodigiosa oficina poética, além da valiosa obra publicada, tem produzido, diariamente, um ou mais poemas, nestes dias da infame e cruel invasão da Ucrânia pela Rússia, que muito nos tem honrado publicar.
Como prosador, tem dezenas de obras publicadas . É difícil resistir ao fascínio da sua escrita. Sendo um leitor omnívoro, conhece, em profundidade, a literatura universal. Muito estudo e crítica literária lhe tem dedicado.
Celebrando-se, hoje, o Dia Mundial do Livro, não resistimos a transcrever algumas passagens do seu tentador convite à leitura, lançado no pequeno e rico breviário de leitura , "Vamos Ler", publicado em Março de 2021.
Ao Eugénio Lisboa e a todos os grandes fazedores de bons livros, o nosso agradecimento profundo.
"A leitura é,
para os grandes leitores, um prazer, uma instrução e uma terapêutica. Prazer,
já vimos como pode sê-lo – e de que maneira absorvente! Quanto a instrução, não
há dúvida de que a grande literatura nos abre grandes e novas perspectivas
sobre o mundo em que vivemos: fala-nos de lugares e de pessoas, de ideias e de
emoções, de conflitos humanos e de aventuras que nos enriquecem. A falta de
leitura pode ser a causa de certos impedimentos aparentemente inexplicáveis.
Contava o proprietário de uma grande empresa americana, que dependia
fundamentalmente do espírito inventivo dos seus engenheiros, para o êxito
comercial da firma, que, a certa altura, começou a sentir-se desconfortável com
o facto de nunca dar aos seus indispensáveis técnicos uma hipótese de chegarem
ao topo da hierarquia da empresa. Mantinha-os a investigar, num nível mais
baixo do organograma, embora com salários elevados, ficando os lugares de topo
para gente do direito e da economia. Bem pagos, sim, promovidos, não.
Permaneciam lá em baixo, a produzir os “gadgets” que a empresa vendia… Por fim,
o proprietário, para aliviar a sua consciência, decidiu que era injusto não dar
aos seus engenheiros, a quem a empresa tanto devia, a mesma oportunidade de
promoção que dava aos juristas e aos economistas. E começou a promovê-los,
empurrando-os suavemente pelo organograma acima. Mas acabou a verificar que, a
partir de um certo nível da hierarquia, nem eles se sentiam confortáveis com as
tarefas de pura gestão, nem os lugares pareciam ajustar-se-lhes. Intrigado,
tentou arduamente, durante algum tempo, perceber a razão disto, uma vez que não
queria que a injustiça se perpetuasse. O tempo foi passando, sem que ele
chegasse a uma conclusão. Até que, um dia, para seu grande espanto, deu com a
resposta: o que aos seus engenheiros faltava, para se sentirem mais
confortáveis no topo da hierarquia, era um bom bocado de leitura e de cultura
geral. A leitura abre-nos portas e ilumina realidades, idiossincrasias,
conflitos, emoções, preconceitos, ambições, etc., que um chefe de empresa não
pode ignorar. A leitura não fornece um apêndice decorativo ao grande empresário
– é simplesmente uma necessidade. Um dos grandes engenheiros electrotécnicos do
nosso país, que foi um grande Professor do Instituto Superior Técnico e um
notável Ministro da Economia – Ferreira Dias – era também um homem de grande
cultura, com a qual muito enriqueceu o seu magistério, do qual, nós, alunos,
aproveitámos, gulosamente: durante as viagens de fim de curso, com ele, como
cicerone, ou sempre que uma oportunidade surgia. O grande matemático, Mira
Fernandes, era um homem cultíssimo, como o era Bento de Jesus Caraça, fundador
da legendária Biblioteca Cosmos, e também o Professor de Física do Instituto
Superior Técnico, António da Silveira (que escrevia admiravelmente). Os grandes
profissionais, os verdadeiramente de topo, não rejeitam a leitura, até ao fim
das suas vidas. Aprender até morrer – é o lema. O mítico empresário Henry Ford
disse-o de forma categórica: “Quem quer que cesse de aprender é velho, quer
tenha vinte, quer tenha cinquenta anos. Quem quer que continue a aprender
mantém-se eternamente jovem.” Só os profissionais e empresários medíocres se
confinam no universo estreito e fechado da sua “especialidade”. Egas Moniz foi
um grande médico, um grande Professor, um notável investigador e um espírito
aberto à cultura e à literatura.
Por outro lado, a grande literatura é também boa e eficaz terapêutica para os nossos momentos de crise. No meio dos desarrumos e tumultos (e até injustiças) que os tempos revolucionários inevitavelmente trazem às nossas vidas, a leitura de um grande livro que nos relate tempos semelhantes, outrora vividos por outros, como, por exemplo, Les Dieux Ont Soif (Os Deuses Têm Sede), de Anatole France, conseguirá acalmar a nossa ansiedade, pondo-a em razoável perspectiva: porque nos mostra, com talento e engenho, como outros já passaram pelo mesmo, tendo depois a tempestade acabado por amainar. Mesmo à proximidade da morte, a leitura de um livro empolgante pode trazer inesperado prazer, distracção e consolo. Lembro-me do meu amigo, Dr. Fernando Ferreira, notável psiquiatra e homem cultíssimo, no seu leito de morte, em Lourenço Marques. Fui vê-lo, um dia, já perto do fim. Na sua mesa de cabeceira, como lenitivo prometido, um medicamento infalível: um romance de Camilo. À saída, perguntei-lhe se queria que lhe trouxesse algum livro. Respondeu-me sem hesitar: “Traga-me o último livro de Domingos Monteiro”. Óptima escolha, pensei eu: um dos nossos maiores contistas. Levei-lhe, um ou dos dias depois, Letícia e o Lobo Júpiter, que agradeceu efusivamente. Espero que o tenha lido antes do seu falecimento, que teve lugar não muito depois.
As pessoas que nunca adquiriram o gosto de ler não fazem ideia do prazer incomensurável que desperdiçam. O gosto da leitura é um dos mais valiosos presentes que a vida nos pode oferecer. Os que têm esse gosto olham, com alguma pena e mesmo com um toque de desprezo, para aqueles que nunca o adquiriram.(...)
A escritora inglesa Virginia Woolf tem uma inesquecível passagem, num dos seus livros, que sublinha de modo pitoresco o valor egrégio do gosto de ler. Nestes termos:
Por outro lado, a grande literatura é também boa e eficaz terapêutica para os nossos momentos de crise. No meio dos desarrumos e tumultos (e até injustiças) que os tempos revolucionários inevitavelmente trazem às nossas vidas, a leitura de um grande livro que nos relate tempos semelhantes, outrora vividos por outros, como, por exemplo, Les Dieux Ont Soif (Os Deuses Têm Sede), de Anatole France, conseguirá acalmar a nossa ansiedade, pondo-a em razoável perspectiva: porque nos mostra, com talento e engenho, como outros já passaram pelo mesmo, tendo depois a tempestade acabado por amainar. Mesmo à proximidade da morte, a leitura de um livro empolgante pode trazer inesperado prazer, distracção e consolo. Lembro-me do meu amigo, Dr. Fernando Ferreira, notável psiquiatra e homem cultíssimo, no seu leito de morte, em Lourenço Marques. Fui vê-lo, um dia, já perto do fim. Na sua mesa de cabeceira, como lenitivo prometido, um medicamento infalível: um romance de Camilo. À saída, perguntei-lhe se queria que lhe trouxesse algum livro. Respondeu-me sem hesitar: “Traga-me o último livro de Domingos Monteiro”. Óptima escolha, pensei eu: um dos nossos maiores contistas. Levei-lhe, um ou dos dias depois, Letícia e o Lobo Júpiter, que agradeceu efusivamente. Espero que o tenha lido antes do seu falecimento, que teve lugar não muito depois.
As pessoas que nunca adquiriram o gosto de ler não fazem ideia do prazer incomensurável que desperdiçam. O gosto da leitura é um dos mais valiosos presentes que a vida nos pode oferecer. Os que têm esse gosto olham, com alguma pena e mesmo com um toque de desprezo, para aqueles que nunca o adquiriram.(...)
A escritora inglesa Virginia Woolf tem uma inesquecível passagem, num dos seus livros, que sublinha de modo pitoresco o valor egrégio do gosto de ler. Nestes termos:
“Tenho algumas vezes sonhado que, no dia em que o Dia do Juízo
amanhecer e os grandes conquistadores e juristas vierem receber as suas
recompensas – as suas coroas, os seus louros, os seus nomes gravados
indelevelmente no mármore imperecível – o Altíssimo se virará para S. Pedro e
dir-lhe-á, não sem uma certa inveja, quando nos vir a nós aproximar-nos, com os
nossos livros debaixo dos braços: ‘Olha, estes não precisam de recompensa. Não
há nada que possamos dar-lhes. Eles já gostam de ler!’”
(...)
Outro exemplo clássico de como a leitura pode absorver, não apenas um leitor, mas dezenas de milhares de leitores, simultaneamente, é a história da publicação, em fascículos, de Abril de 1840 a Novembro de 1841, do famoso romance de Dickens, The Old Curiosity Shop (A Loja de Antiguidades). O livro ia sendo devorado por milhares de leitores ingleses e americanos, à medida que os fascículos iam sendo publicados. Quanto mais o romance se aproximava do fim, mais a ansiedade dos leitores aumentava: iria a pequena Nell morrer ou não? Vários leitores tinham mesmo escrito ao romancista, suplicando-lhe que não “matasse” a menina. Conta-se que, em Nova Iorque, quando o barco que trazia os últimos fascículos, de Londres, se preparava para acostar no porto, centenas de leitores de Dickens começaram a gritar, do cais, para os oficiais do navio, não contendo a sua impaciência: “A pequena Nell morreu ou não morreu?” Hélas!, ela tinha morrido, para grande desgosto dos leitores seus amigos…
Induzir nas pessoas esta capacidade de se deixarem absorver por um bom livro ou por um grande livro é uma arte delicada e necessária. O psicólogo e filósofo B. F. Skinner observava, a este respeito: “Não se deve ensinar os grandes livros, deve-se ensinar a amar a leitura.” Eis uma verdadeira medalha a nunca esquecer. Os livros complicados, sugeria Camus, são feitos para serem “estudados”, os bons livros são feitos para serem lidos e amados. No fundo, a fórmula, para se chegar à leitura e ao prazer dela é simples: para aprendermos a nadar, basta lançarmo-nos à água; para aprendermos a gostar de ler, basta pegarmos num livro atraente e iniciarmos a sua leitura. Tome-se um conto qualquer da dúzia de belos livros que nos deixou Domingos Monteiro (1903 – 1980), ou um volume de contos e novelas, por exemplo, Léah e Outras Histórias, de José Rodrigues Miguéis (1901 – 1980) ou os Novos Contos da Montanha, de Miguel Torga (1907 – 1995) ou as delicadas, profundas e pungentes Histórias de Mulheres, de José Régio (1901 – 1969) e prometo ao leitor que se deixará absorver, sem remédio, por qualquer destas histórias exemplares. Os grandes contadores de histórias fazem duas coisas capitais: entretêm-nos e enriquecem-nos. Clifton Fadiman, conhecido jornalista e escritor, encarregado, durante dez anos, da secção de crítica da prestigiosa revista New Yorker, observava com inexcedível agudeza: “Quando lemos um clássico, não vemos mais, no livro, do que víramos antes, vemos mais, em nós, do que víramos antes.” Isto é, a leitura dos bons livros instrui-nos sobre o mundo fora de nós e sobre o mundo dentro de nós. Ou, ainda, por outras palavras, do autor de uma vasta obra ensaística, Holbrook Jackson: “A finalidade de ler não é mais livros, mas sim mais vida.”
(...)
Outro exemplo clássico de como a leitura pode absorver, não apenas um leitor, mas dezenas de milhares de leitores, simultaneamente, é a história da publicação, em fascículos, de Abril de 1840 a Novembro de 1841, do famoso romance de Dickens, The Old Curiosity Shop (A Loja de Antiguidades). O livro ia sendo devorado por milhares de leitores ingleses e americanos, à medida que os fascículos iam sendo publicados. Quanto mais o romance se aproximava do fim, mais a ansiedade dos leitores aumentava: iria a pequena Nell morrer ou não? Vários leitores tinham mesmo escrito ao romancista, suplicando-lhe que não “matasse” a menina. Conta-se que, em Nova Iorque, quando o barco que trazia os últimos fascículos, de Londres, se preparava para acostar no porto, centenas de leitores de Dickens começaram a gritar, do cais, para os oficiais do navio, não contendo a sua impaciência: “A pequena Nell morreu ou não morreu?” Hélas!, ela tinha morrido, para grande desgosto dos leitores seus amigos…
Induzir nas pessoas esta capacidade de se deixarem absorver por um bom livro ou por um grande livro é uma arte delicada e necessária. O psicólogo e filósofo B. F. Skinner observava, a este respeito: “Não se deve ensinar os grandes livros, deve-se ensinar a amar a leitura.” Eis uma verdadeira medalha a nunca esquecer. Os livros complicados, sugeria Camus, são feitos para serem “estudados”, os bons livros são feitos para serem lidos e amados. No fundo, a fórmula, para se chegar à leitura e ao prazer dela é simples: para aprendermos a nadar, basta lançarmo-nos à água; para aprendermos a gostar de ler, basta pegarmos num livro atraente e iniciarmos a sua leitura. Tome-se um conto qualquer da dúzia de belos livros que nos deixou Domingos Monteiro (1903 – 1980), ou um volume de contos e novelas, por exemplo, Léah e Outras Histórias, de José Rodrigues Miguéis (1901 – 1980) ou os Novos Contos da Montanha, de Miguel Torga (1907 – 1995) ou as delicadas, profundas e pungentes Histórias de Mulheres, de José Régio (1901 – 1969) e prometo ao leitor que se deixará absorver, sem remédio, por qualquer destas histórias exemplares. Os grandes contadores de histórias fazem duas coisas capitais: entretêm-nos e enriquecem-nos. Clifton Fadiman, conhecido jornalista e escritor, encarregado, durante dez anos, da secção de crítica da prestigiosa revista New Yorker, observava com inexcedível agudeza: “Quando lemos um clássico, não vemos mais, no livro, do que víramos antes, vemos mais, em nós, do que víramos antes.” Isto é, a leitura dos bons livros instrui-nos sobre o mundo fora de nós e sobre o mundo dentro de nós. Ou, ainda, por outras palavras, do autor de uma vasta obra ensaística, Holbrook Jackson: “A finalidade de ler não é mais livros, mas sim mais vida.”
Eugénio Lisboa, in Vamos Ler, um cânone para o leitor relutante, Guerra & Paz Editores Lda, Março de 2021, pp. 42,43, 45,46, 48, 57,58,59
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