quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Toda a gente tem medo

"Por causa de um suicídio a que me foi dado assistir, com um autor-actor que então era o ser mais querido e que mais me acudia ao coração, desse suicídio que mais fez —  à minha formação e à minha deformação — do que qualquer outra tentativa posterior de amor ou ódio, senti desde o fim da minha infância que o homem facilitador da sua própria morte é o instrumento de uma força maiúscula (chamai-lhe Deus ou Natureza), que ao pôr-nos no meio das mediocridades terrestres arrasta na sua trajectória, e para mais longe do que este globo de expectativa, os únicos corajosos que nele existem.
   Suicidamo-nos por amor, por medo, por causa da sífilis, ao que se diz. Não é verdade. Toda a gente ama ou julga amar, toda a gente tem medo, toda a gente é mais ou menos sifilítica.
   Mas por que não posso, na verdade, ver no suicídio um meio de selecção?
   Só se suicidam os que não têm a quase universal cobardia de lutar contra esta já referida e tão intensa sensação de alma que até nova ordem seremos obrigados a tomar por uma sensação de verdade.
   Não é verosímil que nenhum amor, nenhum ódio sejam justos nem definitivos. No entanto, apesar de eu ter tido uma educação moral e religiosa despótica, a estima que muito contra vontade minha sou forçado a manter por qualquer pessoa  que não tenha sentido medo nem limitado o seu impulso, o impulso mortal, leva-me todos os dias a invejar ainda mais os que sentiram uma angústia forte, ao ponto de não poderem continuar a aceitar os divertimentos episódicos.
   Os êxitos humanos são moeda falsa, pura fancaria. Se a felicidade terrestre nos permite ter paciência, fá-lo negativamente, à maneira de um soporífero. A vida que aceito é o mais terrível argumento contra mim próprio. A morte que várias vezes me tentou ultrapassava em beleza esse medo de morrer, na sua essência uma gíria, e ao qual poderia também chamar tímido hábito.
   Eu quis abrir a porta e não me atrevi a fazê-lo. Não tive razão, sinto-o, acredito-o, quero senti-lo, acreditá-lo; mas porque não encontrei nenhuma solução na vida, apesar do meu esforço a procurá-la, teria força para fazer algumas tentativas se não vislumbrasse no gesto definitivo, último, a solução?
   Aliás, a obsessão do suicídio permanecerá em mim, sem dúvida, como a melhor e a pior garantia contra o suicídio."
René Crevel, in O Meu Corpo e Eu, tradução e apresentação de Aníbal Fernandes, Sistema Solar, Outubro de 2014, pp. 79-80

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