No
dia da cor amarela
Tudo
lhe vem à memória. Sem o poder evitar, suspira e chora.
Canção
de Rolando
Não
sou pessimista, eu amo este mundo horrível.
Emil
M. Cioran, in “ Cahiers”
"O
sol andava lá por cima. Os raios tinham
a cor que vestira. Um amarelo pincelado de oiro. Uma jóia que nem sempre
brilhava.
Acordara
cansado. Levara algum tempo para decidir qual a cor que envergaria. O sol
despontara e decidira por ele.
O
amarelo trazia-lhe à memória outros tempos em que a indecisão, a falta de
energia tinham conduzido à derrocada de muitos sonhos. De amarelo doirado
passara-se para uma amarelecida e anémica cor que fazia desfalecer quem a ela se chegasse.
Era
, talvez, a cor de entre todas as cores
, a que não lhe assentava tão bem. Quase juraria que lhe ficava mal. Perdia-se
na palidez do seu rosto, por isso carregara nos
tons doirados para esbater a mancha do amarelo. No entanto, não queria
intimidar as palavras que viriam nesse dia. Não imaginava, nem tecia suposições
sobre o que iria enfrentar. Era o afinador de palavras. Que viessem. A todas
sondaria.
O
mundo era agora a sua casa. Quando abriu os portões, o ar quente da manhã
trouxe-lhe os cheiros que nem mesmo
um insensível olfacto deixaria de detectar . Vacilou
entontecido pela pestilência que se sentia. O ar pesado
e denso estava quase
irrespirável. Sufocaria, se não tivesse a resistência que há muito acumulara.
As
palavras exalavam os odores putrefactos
da covardia, da inveja , do desespero, da raiva encapotada. Palavras podres
vestidas de amarelo. Como era possível. Se um ameno calor também estava no ar.
Escutava
os lamentos surdos, quase inaudíveis pela intensidade da peste que prostrava aquelas palavras, num amarelo agónico, moribundo.
Ter-se-ia
esvaziado a representação simbólica do amarelo. Não tivera tempo para investigar. Viera veloz e destro , assim que
fora chamado.
Algo
de muito grave e doloso tinha acontecido. Acabava de o descobrir perante a realidade que se estendia por este
horizonte outrora tão vigoroso.
Alguém
dissera, num poema, que as palavras estavam gastas. Um poeta inteligente que
fora glosado, posteriormente, por um outro, mestre em claras palavras. A poesia é realmente lembrança e lembrança é
apenas poesia. Que a palavra de um
poeta é a essência do seu ser.
Em
verdade, os poetas são os legisladores do
mundo, não reconhecidos.
Frases
feitas de clarividentes palavras que lhe acorriam diante daquela realidade
perturbadora.
Quem
teria legislado este tempo último. Certamente uma mente devassa ou nefasta.
Nunca um poeta provocaria tal hecatombe.
Quem
menosprezara a alegria, o optimismo, o riso, a energia, a ventura, o vigor, a
determinação, a clareza, a coragem que sempre vestiram amarelo.
A
claridade intensa do dia deixava a nu um campo imenso de palavras amarelas.
Estendiam-se, por ali, exangues, inertes.
Teria
de pensar de novo, o pensado. A vida
era feita de estranhos e inesperados movimentos circulares. Alargavam-se à
partida para se fecharem ao regresso num mesmo ponto. Partida e chegada
partilhavam um único e coincidente porto.
E
foi, então, que lhe chegou um soluço quase telúrico, como gerado na profundeza
da terra que pisava. Era ela. Não tinha qualquer dúvida. A palavra que
sublevaria toda aquela moléstia imposta, provocada pelo laxismo, pelo
permissivismo instituído. O mal vinha de um tempo finissecular, quando tentaram
extrair à alegria o traço rebelde que junta a coragem ao talento.
Teria
de apelar ao vento para fustigar aquele cheiro nauseabundo. Expulsá- lo para
longe, para a terra de ninguém. A palavra precisava de respirar. Só assim seria
possível cavar a terra. Alargar o espaço e permitir a sua sobrevivência.
E
dócil, o vento, soltou, com redobrado fôlego,
os seus mil braços, desenterrando o amarelo que coloria todas as novas e velhas
palavras que circundavam a Alegria.
Num
ápice, longas filas de resplandecentes palavras juntavam-se à Alegria,
engalanadas num amarelo comum.
Anulara-se
a maldição que fizera do amarelo a cor do desespero.
A
evidência provava, em renovado sublinhado, que quem tente interpretar a humanidade pelos seus próprios olhos,
descobrirá muita coisa estranha que lhe causará perplexidade."
Maria José Vieira de Sousa, in " O Afinador de Palavras", 2016
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