terça-feira, 10 de março de 2015

Tentação

«O comboio pôs-se em marcha e ficámos sós. Só então, por estranho que pareça, atentei bem nela. A sensação que tive, não lha posso descrever. Eu nunca tinha visto e nunca mais voltei a ver ninguém a quem melhor pudesse servir a expressão «anjo do Senhor». Nem as virgens dos primitivos nem as dos italianos, nem mesmo as dos místicos espanhóis, em que, apesar de tudo, a carne se revela, por melhores que sejam os disfarces, para atestar a sua origem humana. Mas nela não. Ela, era a imagem da pureza absoluta, como a dum ser que tivesse sido gerado antes do pecado inicial. E não julgue que a sua figura era destas que podem ser concebidas pela imaginação de um asceta. Não; não havia nela nada de esquálido, ou de anguloso, nem esses lábios finos nem esse olhar mortiço que teoricamente são os atributos da castidade perfeita. Não; era uma mulher de olhar luminoso, de lábios cheios e formas harmoniosas que se moldavam nitidamente sob a severidade do hábito. O que havia nela de integralmente puro, posso mesmo dizer, de divino, era qualquer coisa que vinha de dentro e que, revelando-se através da doçura do olhar e da suavidade da voz, envolvia a sua configuração humana num halo imponderável e intangível de beleza etérea. Senti-me enleado e qualquer outro se sentiria no meu lugar; mas não havia no meu enleio, pode crer, outra coisa que não fosse uma espécie de arroubo místico, uma vontade de ajoelhar e de rezar como se Deus me tivesse concedido uma graça imerecida e inesperada...
«De repente, senhor, tudo se transformou, e ainda hoje estremeço de horror e de remorso, ao lembrar-me dessa transformação.
«A Irmã Maria Filipe – era esse o seu nome monástico – começara a falar da sua vocação religiosa. Desde criança que se sentira votada a Deus. Ninguém a induzira a professar e a família, de começo, opusera-se mesmo a isso. Mas ela vencera todas as resistências e tinham acabado por ceder. Começara por ser freira hospitalar, e conquanto o sofrimento dos homens a comovesse, o seu contacto desgostava-a. Por isso pedira – suplicara até – aos superiores que a deixassem ingressar numa ordem mais severa e mais isolada do mundo. E, pela graça de Deus, a autorização tinha chegado. Ia agora para Pau, encerrar-se numa espécie de túmulo, onde não chegavam nem a luz do sol nem as vozes dos homens.
E agora, na solidão e no silêncio, podia entregar-se inteiramente à oração e às alegrias supremas que ela proporcionava. Ia satisfazer o seu mais ardente desejo: aproximar-se cada vez mais do seu divino Esposo e esperar ansiosamente pelo momento em que Ele a julgasse merecedora e a chamasse para Si.
«Eu começara a ouvi-la encantado. A doçura da sua voz e o entusiasmo místico das suas palavras tinham-me provocado uma espécie de anestesia do pensamento e da vontade que me enleavam completamente... Mas, de súbito, percebi que entre mim e aquela mulher não havia nada de comum. As palavras que dizia não eram para mim, mas para ela mesma. Compreendi então que, para ela, eu não tinha realidade nem física, nem espiritual, que eu, para ela, não existia.
«Ora foi na altura em que tomei consciência disso, nesse preciso momento, que se deu em mim a transformação em que lhe falei. Foi a princípio uma revolta surda, como que a irritação do homem novo em face da mulher jovem que sabe que nunca poderá vir a pertencer-lhe. Mas isso, que tinha ainda qualquer coisa de humano e justificado, durou apenas um instante, para ser substituído por um ódio absurdo e violento que já não dizia respeito nem ao meu instinto nem à minha consciência. Sim, meu caro senhor, era um ódio fora de mim, um ódio que vinha do fundo do Tempo, de tão longe, de tão longe, que ultrapassava os próprios limites da Criação. E aquele ódio não se dirigia contra ela, mas contra Aquele a quem ela se queria entregar: contra o meu Inimigo eterno e natural... Era a tentação – a tentação dominadora e invencível. E naquele momento eu não era outra coisa senão o próprio Satanás. «Julgas – pensei – que Ela vai ser tua? Julgas que vais tirar-ma? Enganas-Te. Porque Tu também Te enganas. Primeiro há-de ser minha, só minha.» Eu não sabia a quem dirigia aquele desafio; o que sei é que era veemente e sincero. E não pense que o que eu sentia era o desejo humano e natural que qualquer homem pode sentir por qualquer mulher. Não; era outra coisa muito diferente: a determinação diabólica e invencível de conspurcar aquela pureza, de aviltar aquele sonho, de aniquilar, para sempre, a tranquilidade espiritual daquela alma... Não sei que transformação se operou na minha fisionomia, o que sei é que ela tomou repentinamente consciência da minha presença e estremecendo murmurou: «Estou a enfadá-lo, irmão?...» «Não, não está a enfadar-me, irmã...», respondi hipocritamente respeitoso.
«Ia sentado no banco em frente dela, e, com o ar mais natural, levantei-me, e fechei a porta do compartimento. Depois, com a mesma naturalidade, puxei as cortinas, baixei a luz, e fui sentar-me ao pé dela.
«Vem frio do corredor, e esta luz é muito forte», disse para justificar os meus actos. Mas a justificação era desnecessária. Naquela alma pura, não havia qualquer desconfiança e muito menos a desconfiança do que se passava dentro de mim. Entretanto eu sabia que íamos sós, quer no compartimento, quer na própria carruagem, e sabia também, por ter ocasionalmente reparado nisso, que a carruagem estava desligada do resto da composição do comboio. Não havia pois o risco de entrar qualquer revisor, e o comboio, que era rápido, só viria a parar em Miranda del Ebro, daí a hora e meia. Não tinha ainda nenhuma intenção formada – ou melhor, não sabia que a tinha – mas o facto de ela estar, quer pela sua inocência, quer pelas circunstâncias, à minha mercê, enchia-me de uma alegria monstruosa.
«A irmã já pensou... – comecei com uma voz convincente, cujo timbre ao mesmo tempo untuoso e metálico eu próprio desconhecia – a irmã já pensou que o acto que vai praticar é um acto de puro egoísmo? Já pensou na injustiça que representa abandonar os seus doentes, os que viam nos seus cuidados a misericórdia e providência de Deus, pelo que pensa serem os exclusivos interesses da sua alma?»
«A Irmã Maria Filipe estremeceu e arriscou timidamente:
«Mas eles têm muito quem cuide deles. Eu não lhes era precisa...»
«Isso é o que a Irmã supõe... Para quantos, não seria a Irmã a única pessoa capaz de lhes mitigar as suas dores? E o que são eles agora? Pobres seres abandonados, por via de uma ambição, que nem por lhe parecer legítima e sagrada deixa de ser egoísta e cruel... Eu sei que a Irmã – porque nunca viveu e porque nunca sofreu – pensa que só há um caminho para a bem-aventurança. E pensa que é o que escolheu. Mas isso não é verdade. As almas não têm caminho certo para chegar a Deus. E o verdadeiro é, por vezes, o mais tortuoso e acidentado, aquele em que a gente pode cair e levantar-se, isto é, pecar e arrepender-se... Veja Nosso Senhor Jesus Cristo – e aqui não hesitei em invocar sacrilegamente o seu sagrado nome –, como Ele desceu à Terra e veio viver a vida dos homens para os poder entender o redimir. E é isso que faz a sua grandeza... Esposa de Cristo, como é que a Irmã quer que Ele a receba em seu divino seio sem ter corrido os mesmos riscos que Ele? Como é que quer subir ao Céu sem o ter merecido?»
«Pálida, a Irmã Maria Filipe olhava para mim com os olhos fixos, como que hipnotizada...
«Perdoe-me, Irmã – murmurei com fingida humildade. – Perdoe-me, mas, quando soube que ia isolar-se do Mundo, eu próprio me senti abandonado... «É que eu, Irmã, conheço como ninguém o abandono e as misérias dos homens. Sou órfão. Nunca conheci pai nem mãe, ou antes, eles nunca me quiseram conhecer, porque me abandonaram... Sou filho do Pecado inconfessável, aquele que só a bondade dos seres votados a Deus pode redimir...»
«Era uma ignominiosa mentira, mas estava disposto a tudo para a enternecer. Na alma das mulheres, mesma a alma das mais puras e indiferentes, há sempre uma porta capaz de se abrir. Pode ser a da Vaidade, a da Ambição, a do Desejo, mas pode ser também a da Bondade. A questão está em descobri-la e saber bater a ela...
«Toda a minha existência – prossegui com voz afectadamente comovida – tem sido uma luta contra esta vergonha oculta e contra o desprezo e a indiferença dos outros. E no fundo, Irmã, apesar da minha aparente vitória sobre a vida – eu que nunca consegui amar, nem ser amado – continuo o mesmo homem perdido…»
«À maneira que ia falando ia espreitando nos seus olhos uma sombra de comoção, o momento crucial que me permitisse avançar mais um passo no caminho tenebroso que estava a trilhar, mas os seus olhos continuavam fixos e imóveis como os duma estátua... «Quando há pouco a vi entrar, Irmã, senti-me salvo... Não sei dizer porquê, mas senti que só a Irmã poderia impedir que eu me precipitasse no abismo que se abre aos meus pés... E agora, que sei o que vai fazer, sinto-me outra vez abandonado e perdido...»
«A minha voz assumira uma inflexão dolorosa e apaixonada e, pela primeira vez, a senti estremecer. A minha eloquência era vil e descabida, mas as palavras, o mais das vezes, não valem pelo que significam mas pelo momento e pela forma como são ditas... Intimamente rejubilei. Ofegante o comboio continuava infatigável o seu caminho através do planalto, e eu senti que era chegado o momento.
«Num gesto enérgico tomei-lhe as mãos, que se abandonaram inertes nas minhas.
«Olhe, Irmã – continuei num tom imperativo e doce – a doutrina de Sto. Agostinho já foi abandonada há muito pela Igreja e só os herejes, como Lutero e Calvino, a perfilharam. Não há predestinação para a santidade, e quem quiser atingi-la tem que a merecer. Para isso, porém, é preciso lutar e sofrer. Mais: é preciso pecar e sofrer o castigo do pecado. Repare bem, Irmã: S. Pedro negou o nome de Cristo três vezes antes de o galo cantar; S. Paulo só o reconheceu na estrada de Damasco; e Santa Maria Egipcíaca pagou com o corpo a passagem para a Terra Santa. Todos eles pecaram e amaram e todos eles alcançaram o Céu.
Acredite, Irmã, Cristo continua crucificado no sofrimento dos homens. E quem quiser sarar as suas chagas tem que se aproximar deles; tem que consolá-los e amá-los... O amor humano é o único caminho para chegar a Deus. Sim, o amor humano...»
«Aproximei a minha cara da sua e num gesto brusco passei-lhe o braço pela cintura. Ela não se defendeu, mas não posso descrever-lhe o pavor que se reflectiu nos olhos... Só sei que esse medo sideral, em vez de me comover, me encheu de um júbilo satânico... «Se és tão poderoso - pensei, num desafio sacrílego – porque não paralisas os meus braços, porque não fazes descarrilar o comboio?...»
«Tinha-a nas minhas mãos, mas tinha-a como uma ave presa nas garras de um gavião: trémula e apavorada. E não era isso que eu queria. O que queria era fazê-la trair o seu sonho, fazê-la pecar também, se não em actos, pelo menos em pensamento. Doutra forma – sentia-o confusamente – o meu acto não passaria de um acto inútil e torpe, e a minha vitória não seria completa. Não; nem sequer seria uma vitória. Aproximei mais a minha cara da sua, e vi-a retrair-se como se o meu hálito a queimasse. Depois, deliberadamente, apertei-a contra o meu peito e poisei os meus lábios sobre os seus. Primeiro com doçura, e depois com violência e apaixonado frensim. Sob o escapulário, sentia-lhe os seios duros e virgens e o coração bater descompassado, e as minhas mãos iam percorrendo sabiamente o seu corpo, procurando acordar, sob aquela camada etérea e divina de pureza, o seu instinto adormecido. Não sei que tempo durou essa abominação; sei apenas que só parei com esse criminoso manejo quando os seus lábios se entreabriram num suspiro e me pareceu – e digo pareceu-me porque penso hoje para minha tranquilidade que me iludi – que ela correspondia aos meus beijos. Continuei ainda com as minhas mãos apertadas nas suas, mas o que havia então em mim, mais do que alegria, era um cansaço terrível, como se viesse a caminhar, desde o fundo do tempo, através dos séculos infindáveis, para regressar a mim mesmo.
«Ela cerrara os olhos, e eu, sem saber como, adormeci. Quando acordei, em Irun, na fronteira, despertado pelo revisor, estava sozinho na carruagem.
«Desci à gare e procurei-a por toda a parte inutilmente. Mas não havia em mim ainda nem angústia nem remorso. Verdade seja que não me recordava dos actos abomináveis que praticara, mas apenas que prometera à Madre, em Burgos, encaminhar-lhe os passos. Foi só em Hendaia, já depois de ter ido à Polícia e à Alfândega, que voltei a vê-la. Estava de pé, encostada a um pilar da estação, com a saquinha aos pés, e um ar absorto. Chamei então por ela: «Irmã Maria Filipe.» Ela encarou comigo sem me reconhecer. Repeti o chamamento: «Irmã Maria Filipe.» Foi como se acordasse de súbito. Olhou-me fixamente, e nas suas feições pintou-se um tal pavor e uma tão desvairada repugnância que retomei imediatamente a consciência do que tinha feito... «Irmã... – murmurei com um desespero sem limites. – Irmã, perdoe-me...» Mas ela não me ouvia: continuava com os olhos fixos em mim e com as feições descompostas. Não sei o tempo que isso durou, só sei que, de repente, ela soltou um gemido e persignou-se. Depois, voltou-se e sempre com a saquinha apertada entre as mãos desatou a fugir pela plataforma como se fosse perseguida pelo Demónio. Ainda quis correr atrás dela mas fiquei paralisado e limitei-me a segui-la com os olhos até a ver perder-se entre a multidão...»
O homem calou-se bruscamente e eu vi o crucifixo tremer entre as suas mãos.
A cabeça descaíra-lhe sobre o peito e ele parecia-me agora um boneco de trapos ou um saco vazio. Eu pela minha parte – tal era o acento de verdade da sua narrativa – sentia-me, ao mesmo tempo, indignado e comovido. Aquele homem causava-me, contraditoriamente, horror e pena. Senti que devia respeitar o seu silêncio mas não me contive:
– E depois?
– Depois... – respondeu com dolorosa humildade – nunca mais a vi, e por mais que o tentasse, directa e indirectamente, nunca mais soube dela. Não sei se é viva se é morta. Mas é como se soubesse. Estou a vê-la, dia por dia, hora por hora, segundo por segundo... Estou a vê-la, senhor, ajoelhada aos pés do confessor, a confessar o meu pecado como se fosse o seu... Estou a vê-la, a sofrer as insónias e os remorsos do meu crime, e a penitenciar-se por ele. Sinto a sua carne rasgada pelos cilícios e a sua alma lacerada pela angústia, e – ai de mim! – não posso fazer mais nada senão arrepender-me. A única ideia que me consola é que eu, com o meu monstruoso crime, talvez tenha concorrido para ela alcançar o céu, e que, no fundo, não sou responsável por ele. Não acha, senhor?"
Domingos Monteiro, in " Contos e Novelas- Histórias Castelhanas", INCM
Sobre o livro:
"O dom natural de contar histórias, a noção do ritmo, a sábia preparação do clímax, a possibilidade de criar um espaço imaginário em que o real se apresenta, simultaneamente, mo mais patente e no mais simbólico, são porventura, as características que definem, imediatamente a arte de Domingos Monteiro."
António Quadros 
"As Histórias Castelhanas constituem uma obra ímpar na história literária do seu autor e, também, na história da novelística portuguesa."
David Mourão-Ferreira
Sobre o autor:
"Domingos Monteiro faleceu em 17 de Agosto de 1980, com setenta e sete anos de idade.  Advogado, escritor, jornalista, editor, a sua vida atravessou quase oito décadas, em que a sua personalidade se afirmou por uma constante busca de um destino, onde os seus ideais de liberdade se  transformam, não raras vezes, em sonhos singulares, de enigmáticas radiações. Transmontano de boa cepa, nasceu em Barqueiros, a seis de Novembro de1903. Antes mesmo de entrar para a Universidade de Lisboa, onde viria a licenciar-se em Direito, com dezoito valores, no ano de 1927, já a sua veia poética se tinha manifestado.  Aos dezasseis anos publicou o primeiro livro de versos, Oração do Crepúsculo (1919), prefaciado por Teixeira de Pascoais, seguido, dois anos depois, pela Nau Errante, que dedicou a este grande poeta.O primeiro soneto desta obra é quase uma  consagração:       
                 "Meu livro é para vós, para vós feito...
                  é para vós, mulheres do meu país."
Em 1965 o seu livro O Primeiro Crime de Simão Bolandas tinha recebido o "Prémio Nacional de Novelística"; no mesmo ano, o Dr. Domingos Monteiro foi eleito Sócio Correspondente da Academia de Ciências de Lisboa.  Como Sócio Efectivo, sucedeu, em 1969, na Cadeira que tinha pertencido a Aquilino Ribeiro, logo antes de Delfim Santos.O Brasil, por proposta de Pedro Calmon e Jusoé Montello, entregou-lhe igualmente o lugar que, na Academia Brasileira de Letras tinha pertencido a outros ilustres escritores portugueses:  Eugénio de Castro, Augusto de Castro e Joaquim Paço d'Arcos.
Outras distinções consagraram a sua obra: de novo o "Prémio Nacional de Novelística", em 1972, o "Prémio Diário de Notícias" em 1967.
Vários livros e contos foram traduzidos em Castelhano,Catalão, Inglês, Alemão, Polaco e Russo, e incluídos em diversas antologias nacionais e estrangeiras.Foi na novelística que Domingos Monteiro mais se distinguiu.  A sua prosa é directa e fluente.  António Quadros assim o reconheceu, ao afirmar:
"Uma novelística da razão vital, como a que realizou, intuitiva e exemplarmente, Domingos Monteiro, é uma novelística que se amplia a todas as dimensões de ser homem, na sociedade, na natureza, no tempo e no mistério de existir." Site do escritor

Sem comentários:

Enviar um comentário