sábado, 7 de março de 2015

Aqui jaz um século



Epitáfio para o Século XX 


Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras
mundiais, e milhares
de outras pequenas,
e igualmente bestiais

Aqui jaz um século
onde se acreditou,
que estar à esquerda
ou à direita,
eram questões centrais

Aqui jaz um século,
que quase se esvaiu
na nuvem atómica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas,
com sua homeopática
atitude
-nux-vómica.

Aqui jaz um século
que um muro dividiu.
Um século de betão
armado, canceroso,
drogado, empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.

Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas,
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado,
que o vento levou.

Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialéctico
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.

Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas, sibérias e gestapos
e ideologias safenas;
século tecnicolor,
que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custo aproximou.

Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso e esquizo,
que não pode computar os
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.

Aqui jaz um século
que se chamou moderno,
e olhando presunçoso,
o passado e o futuro
julgou-se eterno;
século que de si
fez alarde
e, no entanto
- já vai tarde.
Affonso Romano de Sant'Anna, in “ Epitáfio para o Século XX e Outros Poemas” Coleção: Clássicos de Ouro, Editora: Ediouro
Affonso Romano de Sant'Anna, nascido em Minas Gerais,  é um marco na literatura brasileira, tendo publicado mais de 40 livros e já tendo recebido vários prémios, inclusive o Prémio da União Brasileira dos Escritores. Desde os anos 60, tem influenciado e participado em  movimentos que transformaram a poesia brasileira, além de fazer parte dos movimentos políticos e sociais do país.  Nos tempos de ditadura militar quando  as expressões artísticas eram fortemente reprimidas pela censura, publicou audaciosas obras nos mais importantes jornais do país, em páginas de politica. Muitos poemas do autor foram transformados em posters, placas e cartazes e difundidos aos milhares como forma de resistência.
O poema “Epitáfio para o Século XX”, publicado em 1997, é uma  critica a algumas atitudes políticas, focado em acontecimentos do século XX
Affonso Romano de Sant'Anna poeta, ensaísta, cronista e professor, Afonso Romano de Sant'Anna é rigoroso no texto, não obstante refinadamente popular. Um poeta do nosso tempo, integrado em problemas e perplexidades actuais.
 Neste livro, oferece-se ao público poemas eróticos e sociais de um dos mais legítimos representantes da literatura brasileira contemporânea.

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