O poema não é o canto
que do grilo para a rosa cresce.
O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.
É o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.
O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.
Os acontecimentos são pedras
e a poesia transcendê-las
na já longínqua noção
de descrevê-las.
E essa própria noção é só
uma saudade que se desvanece
na poesia. Pura intenção
de cantar o que não conhece.
Natália Correia, in "Poemas ",
Por António
Valdemar
“Aliança
da criação literária com a coragem na intervenção política.
Presença vigorosa na sociedade portuguesa, da
segunda metade do século XX, Natália Correia (1923-1993) afirmou-se pela
singularidade da criação literária e pela determinação e coragem na intervenção
política. Justifica a homenagem,hoje (22 de Janeiro de 2015) em Lisboa (às 18h), na Fundação Mário
Soares – presidida pelo próprio Mário Soares, seu amigo e admirador de sempre –
e integrada na série “Vidas com Sentido”, para distinguir figuras que
prestigiaram a cultura e honraram a cidadania.
Tal como muitos outros intelectuais e artistas da
sua geração, Natália Correia participou em grandes acontecimentos da oposição
democrática – a fundação do MUD, as campanhas para a Presidência da
República de Norton de Matos e Humberto Delgado. Apoiou outras comissões
eleitorais, entre as quais a CEUD (1969) liderada por Mário Soares e que se
encontra na génese do Partido Socialista. Associou-se aos protestos contra o
assassinato de Humberto Delgado; insurgiu-se perante a reabertura do Tarrafal e
com a perversa denominação Campo do Chão Bom, exarada no Diário do
Governo; e contra o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores por
ter premiado a obra de Ludovino Vieira, preso no Tarrafal. Subscreveu
documentos de solidariedade a presos políticos e às greves universitárias.
Teve livros proibidos pela censura como, por
exemplo, Canto do País Emerso, a propósito da ocupação do paquete Santa
Maria comandada por Henrique Galvão; a tragédia jocosa Homúnculo;
e a Antologia da Poesia Erótica e Satírica que organizou e
prefaciou, apreendida pela PIDE, e objeto de processo-crime e julgamento no
Tribunal Plenário que a condenou a três anos de prisão, com pena suspensa.
Logo a seguir ao 25 de Abril, numa entrevista ao Expresso,
Natália Correia revelou a disponibilidade para a ação política. No âmbito da
Aliança Democrática presidida por Francisco Sá Carneiro e através do PRD foi
eleita deputada. Proferiu intervenções memoráveis. A defesa da língua
portuguesa, a valorização do património cultural, a defesa dos direitos
humanos, os direitos das mulheres, o debate sobre o aborto assinalaram, entre
outros temas, a sua passagem pelo hemiciclo de São Bento.
A política activa não afectou a trajectória literária.
Teve um vínculo ao surrealismo, devido às relações pessoais com Mário Cesariny
e António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas e Manuel de Lima. Integrou as
publicações de Luís Pacheco, o editor do Contraponto, das obras e autores
daquele movimento.
Nunca se submeteu à disciplina de escolas e às
cartilhas de grupos. Quis ser ela própria. Todavia, conciliava à energia e
originalidade da sua criação, a herança poética de Gomes Leal e de Mário Sá
Carneiro; o impulso desencadeado pelas Odes de Álvaro de
Campos, e a torrencialidade da Cena do Ódio de Almada
Negreiros. Atingiu a partir dos seus livros Dimensão Encontrada (1957)
e Comunicação (1959) momentos significativos da poesia
portuguesa. Evidenciou-se pelo arrebatamento lírico, a exuberância barroca, o
ímpeto romântico, a truculência satírica que se cruzam com a força dos
símbolos, a profusão das metáforas, a incursão no herético e no erótico que
afronta e estilhaça as convenções existentes.
Num dos seus poemas autorretratou-se: “Hoje quero a
violência da dádiva interdita/ sem lírios e sem lagos/ e sem gesto vago/
desprendido da mão que um sonho agita./ Existe a seiva. Existe o instinto. E
existo eu/ suspensa de mundos cintilantes pelas veias /metade fêmea, metade mar
como as sereias.”
Entre os paradigmas intelectuais e éticos também incluía
a figura tutelar e a obra emblemática de Antero Quental, um dos seus patrícios
açorianos de eleição. Era o poeta que lhe desvendava as portas da utopia, e a
sede de infinito.
Procurava, contudo, distanciar-se do Antero nocturno,
do poeta e pensador carregado de pessimismo amargo que conduz à negação e à
derrota e num dos seus Sonetos (indisfarçavelmente
autobiográficos) confessou: que sempre o mal pior é ter nascido.
Identificava-se com o outro Antero, o luminoso, que estimulava o exercício da
liberdade e da justiça; e descobria: o meio-dia em vida refervendo, a tarde
rumorosa e repousada, o claro sol amigo dos heróis; (...) tu pensamento não és
fogo és luz.
Daí a categórica afirmação: "Não Antero, meu
Santo, não me mato/ antes me zango até ficar num cato/quem me tocar (maldito!)
que se pique." Assim, Natália Correia definia o seu comportamento humano e
os itinerários da sua poesia. Em vez do mal pior da angústia e desespero do
Antero nocturno, elegia um bem melhor, o privilégio de ter vivido e continuar a
viver até à dádiva interdita. Para sentir todas as volúpias e todas as
audácias. A vida, em plenitude." António
Valdemar,Jornalista, membro da Academia das Ciências,
em Artigo de opinião publicado no jornal Público em 22/01/2015.
A EXALTAÇÃO DA PELE
Hoje quero com a violência da dádiva interdita.
Sem lírios e sem lagos
e sem gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existe eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.
Sem lírios e sem lagos
e sem gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existe eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.
Natália Correia, in Poemas , Porto: Edição de autor, 1955
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