terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Um dia nos libertaremos

Glória

Um dia se verá que o mundo não viveu um drama.

Todas estas batalhas, todos estes crimes,
Todas estas crianças que não chegaram a desdobrar-se em carne viva
E de quem, contudo, fizeram carne viva logo morta,
Todos estes poetas furados por balas
E todos os outros poetas abandonados pelos que
Nem coragem tiveram de matar um homem,
Toda esta mocidade enganada e roubada
E a outra que morreu sabendo que a roubavam,
Todo este sangue expressamente coalhado
À face íntegra da terra,
Tudo isto é o reverso glorioso do findar dos erros.

Um dia nos libertaremos da morte sem deixar de morrer.
06.04.1942
Jorge de Sena, in “ Coroa da Terra”,Porto, Lello&Irmão, 1946


A POLÍTICA DO DIA

Hoje a vida tem o sorriso
dentífrico dos candidados
e pelas ruas nos aponta
o céu em múltiplos retratos

céu não póstumo ou merecido
em cruel sala de espera
mas entre parêntesis de fogo
festiva véspera de guerra.

Teor de montras a vida
com democrático amor
a todos deixa gozar
sua dose de consumidor.

Publicitária a vida faz
sua campanha eleitoral:
É entrar meus senhores, quem dá mais
por princípios que não têm final?

Televisor férias de verão
tira a vida do seu discurso
e um partido providencial
que nos domestica o urso.

Popular a vida é toda
pétalas de apertos de mão.
Que meus versos me salvem
de cair nesse alçapão!


Natália Correia, in O Sol Nas Noites e O Luar Nos Dias, Círculo de Leitores, Março de 1993

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