Era poesia o que nos inspirava. Hoje era a poesia que estaria no ar. Não qualquer tipo de poesia, mas aquela que fora cantada pela voz de Amália Rodrigues. E de supetão e em cadeia, recordámos as palavras que Vasco Graça Moura escreveu num excelente artigo para o Diário de Notícias e a primorosa comunicação que apresentou à Academia de Ciências, Classe de Letras ,em Novembro de 2009. Os ingredientes para compor o tema estavam encontrados. E foi assim que nasceu o post desta quarta feira.
Poética de Amália
Poética de Amália
por Vasco Graça Moura
"Há poucos dias, em conversa com Manuel Halpern, do J/L, a propósito da poesia de Amália Rodrigues, falei da qualidade da escrita dela, que não tinha tido qualquer espécie de educação formal. Não me ocorreu então que, na sua segunda carta a Vitorino Nemésio, ela assumia a confirmação disso mesmo: "Ai meu querido professor/Eu nunca fui sua aluna/ /Não tenho instrução nenhuma, /Como é que posso entender/O que o senhor quis dizer/Sem saber ler nem escrever?" E esse é um dos aspectos, talvez o menos referido e tratado, do milagre de Amália. Nos seus versos, ela soube lançar mão de uma escrita poética intuitiva e certeira, formalmente muito ancorada na tradição da matriz popular, com uma grande fluência, belos achados e, por vezes, algumas agudezas quase maneiristas.
A chave para entender o fenómeno, na parte em que ele pode ser entendido, creio que está precisamente nessa aliança de gosto apurado, sentido da musicalidade e do ritmo, simplicidade verbal e naturalidade de expressão que Amália soube processar com requintada destreza entre a ingénua frescura da tradição e da poesia do povo (da toada beirã às criações dos letristas populares que cantava) e o trato aturado com a poesia mais elaborada dos escritores que foi incorporando no seu repertório. A influência das oficinas de David Mourão-Ferreira e a de Pedro Homem de Mello nalguns dos seus temas próprios parece-me evidente. Mas as coisas não ficam por aí e há outros aspectos que surpreendem, como, em Flores do Verde Pinho, esta habilíssima utilização de uma forma verbal arcaica: "Ai flores do verde pinho, /dizei que novas sabedes/da minha alma, cujas sedes/ ma perderam no caminho!"
E há momentos de grande eficácia técnica. Recordo os meus dois fados favoritos de que Amália escreveu a letra, Estranha Forma de Vida e Lágrima, o primeiro com a sua intensificação repetitiva pela retoma do primeiro verso de cada quintilha no remate dela, a acentuar a "estranheza" da vida daquele "coração independente", o segundo com a reiteração sincopada da primeira metade de cada verso, como se o próprio avançar do poema fosse depender desse "tactear", desse recomeçar da procura da maneira de dizer para chegar à máxima intensidade lírica, a exprimir a fragilidade com que o ser humano se expõe desamparadamente na paixão. O texto de Lágrima, obra-prima da Amália letrista, poderia ser quase integralmente reduzido a quatro quadras, mas a sua transfiguração dramática deve-se a essa espécie de leixa-pren, de retomar insistente e fracturante do teor de cada verso, reforçando uma dialéctica muito fadista que poderia esquematizar-se cruamente desta maneira: realidade/sonho, sofrimento de amor/disponibilidade para morrer.
Nos poemas não cantados (reporto-me à excelente edição de Versos, organizada em 1997 por Vítor Pavão dos Santos) mantêm-se muitas destas características, a que acresce em geral uma nota de humor e de auto-ironia muito pessoal (por exemplo: "Cá por dentro da cabeça/ /vazia como eu a tenho/ por estranho que pareça/atendendo ao seu tamanho"…). Esse humor surge com frequência nas peças de matriz mais popular e também no pequeno bestiário da autora (gafanhotos, grilo, bicho-de -conta, mosquitos, cabra e vários outros animais aí incidentalmente referidos).
Noutros fados, como Lavava no Rio Lavava e Quando Se Gosta de Alguém, a repetição é utilizada com excelentes efeitos, no primeiro a recordar a toada das cantigas de amigo e do romanceiro, no segundo, explorando contradições e perplexidades cujo sentido se reforça exactamente pela engenhosa recondução das questões ao mesmo pressuposto inicial ("quando se gosta de alguém"). Já em Amor de Mel Amor de Fel, a sequência qualificativa e modulada do amor sentido entre os seus pólos de contentamento e amargura, joga com anáforas, com oposições, com hipérboles, com alusões à relação tonal de fado maior e fado menor e, por esta via, com a ambiguidade entre o sentido de fado (canção) e o de fado (fatum, destino).
Enfim, o que em Amália vive e sente está pensando e recordando, como ela escreve em Depois Disto? desisto, redondilhas que começam assim: "Tantas coisas que já li/ /Outras tantas que vivi/Fazem de mim o que sou/Ai se eu tivesse esquecido/Tudo o que tenho vivido/E o coração decorou". Vasco Graça Moura, Crónica publicada no DN em 7.10.2009
LágrimaCheia de penas me deito
E com mais penas me levanto
Já me ficou no meu peito
Jeito de te querer tanto
Tenho por meu desespero
Dentro de mim o castigo
Eu digo que não te quero
E de noite sonho contigo
Se considero que um dia hei-de morrer
No desespero que tenho de te não ver
Estendo o meu xaile no chão
E deixo-me adormecer
Se eu soubesse que morrendo
Tu me havias de chorar
Por uma lágrima tua
Que alegria me deixaria matar
Amália Rodrigues
Com que voz chorarei meu triste fado
Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura prisão me sepultou,
que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado?
Mas chorar não se estima neste estado,
onde suspirar nunca aproveitou;
triste quero viver, pois se mudou
em tristeza a alegria do passado.
Assim a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima ao pé que o sofre e sente!
De tanto mal a causa é amor puro,
devido a quem de mim tenho ausente,
por quem a vida e bens dela aventuro.
Luís de Camões, in " Sonetos"
Fado Português
O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.
Ai, que lindeza tamanha,
meu chão , meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.
Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.
Mãe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.
Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro veleiro
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.
José Régio, in " Fado",
Com o seu chicote, o vento
Quebra o espelho do lago.
Em mim, foi mais violento o estrago
Porque o vento, ao passar
Murmurava o teu nome
Depois de o murmurar, deixou-me.
Tão rápido passou,
Nem soube destruir-me
As mágoas em que sou tão firme.
Mas a sua passagem
Em vidro recortava
No lago a minha imagem de escrava.
Ó líquido cristal dos meus olhos sem ti
Em vão um vendaval pedi
Para que se quebrasse
O espelho que me enluta
E me ficasse a face enxuta.
Ai, meus olhos sem ti...
Em mim, foi mais violento, o vento!
David Mourão-Ferreira
AMÁLIA RODRIGUES:
DOS POETAS POPULARES AOS POETAS CULTIVADOS
POR VASCO GRAÇA MOURA
"(...)Segundo o catálogo que, sob o título de Primavera, o Museu do Fado dedicou a David Mourão-Ferreira, e a lista que a Fundação Amália Rodrigues elaborou, o elenco dos poetas “cultivados” cantados por Amália abrange pelo menos os seguintes nomes:
Do século XIII, Mendinho, Pêro de Viviães e D. Dinis;
Do século XVI João Roiz de Castelo Branco, Bernardim Ribeiro e Luís de Camões;
Do século XIX, António Feliciano de Castilho e Fernando Caldeira;
Do século XX, António Feijó, Júlio Dantas, Afonso Lopes Vieira, Almada Negreiros, António de Sousa, José Régio, Sidónio Muralha, Vasco de Lima Couto, Luís de Macedo, David Mourão-Ferreira, Pedro Homem de Mello, Norberto de Araújo, Reinaldo Ferreira, Francisco Bugalho, Sebastião da Gama, Henrique Segurado, Alexandre O’Neill, José Carlos Ary dos Santos, Manuel Alegre, Teresa Rita Lopes, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes. E, claro está, deveremos incluir neste grupo a própria Amália Rodrigues, cujos poemas, oscilando entre a tentação do popular e o tropismo do trágico, têm muito mérito literário.
As características temáticas destas letras também oscilam entre, por um lado, aquilo a que, na própria área dos poetas cultivados podemos considerar “popular”, por outro lado, o poema de amor, solidão e abandono a exprimir-se numa vox tragica e, ainda por outro, o fado propriamente dito, pensado e escrito como tal. A regularidade formal é de regra, embora nalguns casos coexistam metros diferentes no mesmo poema. Alguns poetas, muito especial Pedro Homem de Mello e David Mourão-Ferreira contribuem, cada um deles, com um numeroso grupo de poemas. Contei nada menos de 11 do primeiro e 17 do segundo, embora, quanto a David, haja que ter em conta algumas adaptações e letras que ele assinou com diferente nome literário, “D. J. Ferreira”. Seguem-se Luís de Macedo e José Carlos Ary dos Santos com sete letras cada um, tantas quantas as fornecidas pela lírica de Camões, a que deve acrescentar-se Manuel Alegre, com quatro textos.
Os poetas mais cantados, Pedro Homem de Mello, David Mourão-Ferreira, Luís de Macedo e Ary dos Santos, são, com excepção do último, uma presença constante na voz de Amália desde o início da década de 1950. Isto quer dizer que é entre vozes da Presença (mais tarde Régio também é cantado) e da Távola Redonda que o repertório mais literário de Amália começa por se construir. Ary do Santos e Manuel Alegre só começam a sê-lo uns vinte anos mais tarde.
Todos estes autores dispõem de uma grande agilidade de oficina, de uma forte densidade verbal e de um sentido excepcional da musicalidade e da sonoridade do verso. É interessante notar que, sendo David um dos nossos maiores poetas eróticos, esse registo erótico quase não aparece, a não ser de modo implícito, nos textos que escreveu para Amália. A nota dominante, para além das articulações das personagens femininas a uma “naturalidade”, luminosidade e colorido lisboetas, prende-se mais com o trágico da paixão que enfrenta obstáculos insuperáveis. Também Pedro Homem de Mello fornece textos em que o trágico da solidão humana ou do desencontro alterna com o pitoresco minhoto das paisagens tudo caldeado pelas pulsões da sua instintiva sensorialidade.
Os temas que Amália vai buscar a Ary dos Santos e a Manuel Alegre são já de outro tipo, em que uma intenção mais ostensivamente política vem agregar-se a notas de enamoramento, metáforas de combate e vivências lisboetas. Em Manuel Alegre conflui uma rica herança da poesia portuguesa, de Camões a Junqueiro e a Gomes Leal, de António Nobre e Pessanha a Miguel Torga, na destreza versificatória, na sonora musicalidade e na eloquência poderosa de um lirismo cuja veemência tanto se exprime na poesia de amor e de exílio como na de indignação e de protesto. Por sua vez, Ary dos Santos, com um notável sentido da palavra cantada, alterna o poema de marcada intenção social e uma lírica amorosa de forte expressão metafórica, tudo com uma maneira muito pessoal de cantar Lisboa e a sua vida.(...)"Vasco Graça Moura em Comunicação apresentada à Classe de Letras da Academia de Ciências, na sessão de 12 de Novembro de 2009.
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