A natureza da Obra
de Arte
XX
“Descrevi noutro lado as circunstâncias em que conheci André Breton, no
barco que nos levava a Martinica: longa viagem em que enganávamos a maçada e o
desconforto discutindo sobre a natureza da obra de arte, primeiro por escrito,
depois em conversa.
Para começar, eu tinha dado um texto a apreciar a André Breton. Ele
respondeu-lhe e eu guardei a sua carta preciosamente. O acaso quis que, muito
mais tarde, arquivando papéis velhos, eu tivesse encontrado o meu texto:
Breton, provavelmente, tinha-mo devolvido.
Ei-lo seguido do texto inédito de Andre Breton. Agradeço a Madame Elisa
Breton e Madame Aube Elleouet a autorização de publicação.
Nota sobre as
relações da obra de arte e do documento, escrita e entregue a André Breton a
bordo do Capitaine Paul Lemerle, em Março de 1941
No
Manifesto do Surrealismo A. B.(André Breton) definiu a criação artística como a actividade
absolutamente espontânea do espírito; tal actividade pode ser concebida como
resultante de um treino sistemático e da aplicação metódica de um certo número
de receitas: todavia a obra de arte define-se - e define-se exclusivamente —
pelo seu carácter de liberdade total. Parece que neste ponto A. B. modificou
sensivelmente a sua atitude (em A Situação Surrealista do Objecto). No entanto a relação que
existe, segundo ele, entre a obra de arte e o documento não é perfeitamente
clara. Se é evidente que toda a obra de arte é um documento, poderá admitir-se,
como o implicaria uma interpretação radical da sua tese, que todo o documento
seja, por isso mesmo, uma obra de arte? Partindo da posição do Manifesto, três interpretações são possíveis:
1) O valor estético
da obra depende exclusivamente da sua maior ou menor espontaneidade, sendo a
obra de arte mais válida (enquanto tal) definida pela liberdade absoluta da sua
produção. Se qualquer pessoa, convenientemente treinada, é susceptível de
atingir esta completa liberdade de expressão, então a produção poética está
aberta a toda a gente. O valor documental da obra confunde-se com o seu valor
estético; o melhor documento (avaliado como tal em função do grau de espontaneidade
criadora) é também o melhor poema; de direito se não de facto, o melhor poema
pode ser não apenas compreendido mas produzido por qualquer pessoa. Podemos
conceber uma humanidade na qual todos os membros, exercitados por uma espécie
de método catártico, seriam poetas.
Tal interpretação
aboliria o conjunto de privilégios electivos englobados até ao presente sob a
designação de talento; e se ela não nega o papel do esforço e do trabalho na
criação artística, pelo menos desloca-os para um estádio anterior ao da criação
propriamente dita: o da pesquisa difícil e da aplicação dos métodos para
suscitar um pensamento livre.
2) Mantendo-se a
interpretação precedente, verifica-se mesmo assim, a posteriori, que os
documentos provenientes de um grande número de indivíduos, se, do ponto de
vista documental, se podem considerar como equivalentes (quer dizer;
resultantes de actividades mentais igualmente autênticas e espontâneas), não o
são no entanto do ponto de vista artístico, já que alguns deles proporcionam uma
fruição e outros não. Como continuamos a definir a obra de arte como um
documento (produto bruto da actividade do espírito), admitiremos a distinção
sem procurar explicá-la (e sem ter a possibilidade dialéctica de o fazer).
Constataremos a existência de indivíduos poetas e de outros que o não são,
apesar da identidade completa, das condições das suas respectivas produções.
Toda a obra de arte continua a ser um documento, mas deverá distinguir-se, de
entre esses documentos, os que são também obras de arte dos que são apenas
documentos. Mas como uns e outros permanecem definidos como produtos brutos,
essa distinção, impondo-se a posteriori, será considerada em si própria como um
dado primitivo, escapando, pela sua natureza, a qualquer interpretação. A especificidade
da obra de arte será reconhecida sem que seja possível detectá-la. Constituirá
um «mistério».
3) Finalmente, uma
terceira interpretação, mantendo o princípio fundamental do carácter
irredutivelmente irracional e espontâneo da criação artística, distingue entre
o documento, produto bruto da actividade mental, e a obra de arte que consiste
sempre numa elaboração secundária. É evidente, no entanto, que esta elaboração
não pode ser produto do pensamento racional e crítico; tal eventualidade deve
ser radicalmente excluída. Mas poderá supor-se que o pensamento espontâneo e
irracional pode, em certas condições, e em alguns indivíduos, tomar consciência
de si próprio e tornar-se verdadeiramente reflexivo, estando entendido que esta
reflexão se exerce segundo normas que lhe são próprias, e tão impermeáveis à
análise racional como a matéria à qual se aplicam. Esta «tomada de consciência
irracional» implica uma certa elaboração do dado bruto, exprime-se através da
escolha, da eleição, da exclusão, da regulamentação em função de estruturas
imperativas. Embora toda a obra de arte continue a ser um documento, ultrapassa
o plano documental, não apenas pela qualidade da expressão bruta, mas também
pelo valor da elaboração secundária que, de resto, apenas se chama «secundária»
em relação aos automatismos de base mas que, em relação ao pensamento crítico e
racional, apresenta a mesma característica de irredutibilidade e de
primitividade que esses mesmos automatismos.
A primeira
interpretação não está de acordo com os factos; a segunda subtrai o problema da
criação artística à análise teórica. Pelo contrário, a terceira é a única que
parece susceptível de evitar certas confusões, às quais o surrealismo nem
sempre parece ter escapado, entre o que é esteticamente válido e o que o não é,
entre o que o é mais e o que o é menos. Qualquer documento não é
necessariamente uma obra de arte, e tudo o que constitui uma ruptura pode ser
igualmente válido para o psicólogo ou para o militante, mas não para o poeta,
mesmo se o poeta também for um militante. A obra de um débil mental tem um
interesse documental tão grande como a de Lautréamont, pode ter uma eficácia
polémica superior, mas uma é uma obra de arte e a outra não, e é preciso ter o
meio dialéctico de dar conta da diferença, e também da possibilidade de Picasso
ser melhor pintor do que Broque, de Apoilinaire ser um grande poeta e Roussel
não, de Salvador Dali ser um grande pintor e ao mesmo tempo um escritor
detestável. Se estes juízos apenas são dados a título de exemplo, juízos deste
teor, ainda que talvez diferentes ou opostos, não deviam deixar de constituir o
termo absolutamente necessário da dialéctica do poeta e do teórico.
Já que as condições
fundamentais da produção do documento e da obra de arte foram reconhecidas como
idênticas, estas distinções essenciais só podem ser adquiridas deslocando a
análise da produção para o produto e do autor para a obra.
Relendo hoje esta nota manuscrita, a inabilidade do pensamento
constrange-me, tal como a deselegância da expressão. Desculpa fraca: é evidente
que escrevi de jacto (apenas duas palavras rasuradas). Teria preferido
esquecê-lo. Mas seria uma injustiça para o importante texto que Breton me
enviou como resposta. Sem o meu, o seu tema seria incompreensível.
No manuscrito de Breton, cuidadosas rasuras tornam indecifráveis uma
dezena de palavras ou membros de frases, substituídos por uma nova redacção nas
entrelinhas onde surgem também alguns acrescentos. As correcções feitas às
últimas linhas, muito emendadas, não permitem avaliar se Breton, com menos
pressa de acabar, teria optado por uma construção gramatical ou se
deliberadamente a rejeitou.
Resposta de André
Breton
A contradição
fundamental que você sublinha não me escapa: ela permanece, apesar dos meus
esforços e de mais alguns para a reduzir (mas não me preocupa nem poderia
confundir-me porque sei que nela reside o segredo do movimento para a frente
que permitiu ao surrealismo durar). Claro que, naturalmente, as minhas posições
variaram sensivelmente desde o 1° manifesto. No interior de textos-programa
deste tipo, que não comportam a expressão de nenhuma reserva, de nenhuma
dúvida, cujo carácter essencialmente agressivo exclui toda a casta de
subtilezas, é óbvio que o meu pensamento tende a adquirir um tom extremamente
brutal, mesmo simplista, que não lhe conheço interiormente.
Esta contradição que
o choca é, creio, a mesma que Caillois, como eu lhe dizia, rebateu de um modo
tão severo. Tentei explicar-me num texto intitulado «A beleza será convulsiva»
(Minotaure n°5) e retomado no início de L’Amour fou. Com efeito, cedo
alternadamente - e afinal por que não? não sou o único — a dois apelos muito
distintos: o primeiro leva-me a procurar na obra de arte uma fruição (é a única
palavra exacta, você emprega-a, já que a análise deste sentimento em mim não me
dá senão elementos para-eróticos); o segundo, que se manifesta
independentemente ou não do primeiro, leva-me a interpretá-la em função da
necessidade geral de conhecimento. Estas duas tentações, que distingo no papel,
nem sempre são separáveis (tendem a confundir-se também em muitas passagens de
Uma época no Inferno).
Escusado será dizer
que, se qualquer obra de arte pode ser considerada sob o prisma do documento, a
recíproca não poderia de forma nenhuma sustentar-se.
Examinando sucessivamente
as suas três interpretações, não me sinto nada embaraçado em lhe dizer que
apenas me sinto absolutamente próximo da última. No entanto, algumas palavras a
propósito das precedentes:
1) Não estou seguro
de que o valor estético da obra dependa da sua maior ou menor espontaneidade.
Eu tinha muito mais em vista a sua autenticidade do que a sua beleza, e a
definição de 1924 testemunha-o: «Ditame do pensamento.., fora de qualquer
preocupação estética ou moral. » Não lhe pode passar despercebido que a omissão
deste último membro da frase pudesse ter privado o autor de textos automáticos
de uma parte da sua liberdade: seria preciso começar por defendê-lo de qualquer
juízo deste tipo se quiséssemos evitar que ele fosse por isso constrangido a
priori e se comportasse de acordo com isso. Infelizmente isto não foi
completamente evitado (mínimo de organização do texto automático em poema:
deplorei-o na minha carta a Rolland de Reneville publicada em Points du Jour
mas é fácil ter em conta esta preocupação e de a retirar da obra considerada).
2) Não estou tão
seguro como você da enorme diferença qualitativa que existe entre os diversos
textos completamente espontâneos que se podem obter. Sempre me pareceu que o
principal elemento de mediocridade susceptível de intervir era devido à
impossibilidade em que se encontram muitas pessoas de se colocarem nas
condições requeridas para a experiência. Contentam-se em registar um discurso
descosido, onde se iludem com os despropósitos, o absurdo, mas podemos
constatar por sinais facilmente discerníveis, que não se expuseram
verdadeiramente, o que basta para afastar o seu pretenso testemunho. — Quando
afirmo que não estou tão seguro disso como você é sobretudo porque ignoro como
é que a ipseidade (comum a todos os homens) se encontra repartida (igualmente
ou, se o está desigualmente em que medida?) entre os homens. Só uma
investigação de carácter sistemático e que deixe provisoriamente os artistas de
lado nos poderia esclarecer a este propósito. A hierarquização das obras surrealistas
não me interessa praticamente nada (ao contrário do que Aragon afirmava em
tempos: «Se escreverem de maneira puramente surrealista algumas imbecilidades
tristes, serão sempre imbecilidades tristes»); o mesmo se passa, como o dei a
entender, com a hierarquização das obras românticas ou simbolistas. A minha
classificação destas últimas obras diferiria radicalmente da que é aceite e,
sobretudo, tenho a objectar a estas classificações o facto de nos fazerem
perder de vista o significado profundo, histórico desses movimentos.
3) Será que a obra
de arte exige sempre esta elaboração secundária? Sim, sem dúvida, mas somente
no sentido muito lato em que você o entende: «tomada de consciência
irracional», e mesmo assim, em que nível de consciência se opera essa elaboração?
Em todo o caso, estaríamos apenas no pré-consciente. As produções de Hélène
Smith em estado de transe não poderão ser tomadas como obras de arte? E se
chegássemos a demonstrar que certos poemas de Rimbaud são pura e simplesmente
sonhos acordados, você apreciá-los-ia menos? Relegá-los-ia para a gaveta dos
«documentos»? A distinção continua a parecer-me arbitrária. Torna-se, a meu
ver, especiosa, quando você opõe Apollinaire poeta a Roussel não-poeta ou Dali
pintor a Dali escritor. Tem a certeza de que o primeiro destes juízos não é
demasiado tradicionalista, de que não reproduz demasiado a «velharia poética»?
Não considero Dali um grande «pintor» e isto pela excelente razão de que a sua
técnica é manifestamente regressiva. O que me interessa nele é o homem e a sua
interpretação poética do mundo. Por isso, não posso associar-me à sua conclusão
(mas isto você já o sabia). Há outras razões mais imperiosas que argumentam em
favor da sua não aceitação da minha parte. Essas razões, insisto, são de ordem prática
(adesão ao materialismo histórico). É verdade que o alijar da responsabilidade
psicológica é necessário à obtenção da atitude inicial de que tudo depende, mas
é a responsabilidade psicológica e moral mais profunda: identificação
progressiva do eu consciente com o conjunto das suas concreções (está muito mal
dito) considerado como o teatro no qual ele é chamado a produzir-se e
reproduzir-se, tendência para a síntese do princípio do prazer com o princípio
da realidade (desculpe por ficar uma vez mais no limiar do meu pensamento sobre
este assunto); concordância a todo o preço do comportamento extra-artístico e
da obra: anti-valerismo.” Claude Levi-Strauss, in "Olhar, ouvir, ler", Tradução de Teresa Meneses, Edições Asa, 1995
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