Crónica
familiar
Por Baptista-Bastos
Na
terça-feira, dia 1 de Julho, o meu filho Miguel fez anos, e eu tive a casa
cheia da família que sempre desejei, da família que fui fazendo ao longo destes
anos todos. Sou o chefe nominal de uma linhagem que nunca enriqueceu, e que
transformou o trabalho numa especial moral em acção. Provenho dessa gente e
dessa moral, e esta, que reuni aqui, mulher, três filhos, dois netos, duas
noras, são, no fundo, o rescaldo, feliz rescaldo, de uma vida que se vai
concluindo.
O Miguel completou 43 anos, escolheu a profissão que quis; o Pedro faz 45, no dia 14 de Julho, o da Tomada da Bastilha; e o Filipe, em 18 de Outubro, entra nos 39. Os meus netos, Francisco e Manuel, têm nomes de imperadores, e são a luz dos meus olhos. Disse, mais ou menos o que digo agora, em 6 de Fevereiro, lançamento do meu livro, "Tempo de Combate", e faço estas públicas confissões (se se considera confissões a narrativa de um homem comum), porque, como repete a Isaura, nunca desisti, mesmo quando as circunstâncias pareciam um convite à demissão. Não desisti, e não desisto, podem estar tranquilos.
Não desisti é, pois, uma norma de vida que sigo sem presunção nem soberba. Já me armadilharam algumas vezes, não muitas, mas as suficientes para deitar um homem abaixo. Contudo, não sou o único nesta esquadria. Foi o exemplo de muitos mais homens que me ajudou a não capitular. Vejo, agora, da janela, o meu vizinho que teve uma trombose, caminha com dificuldade, apoiado numa bengala, mas também não desiste. Há dias perguntei-lhe se não sentia um certo constrangimento com as manifestações, mesmo discretas, que, no bairro lhe faziam, quando caminhava levemente de lado. "Quero que eles se lixem!", vozeirou, e foi à vida. O desapego ao que os outros possam pensar é, também, uma forma de superioridade moral. Eu penso de maneira diferente: não gosto daquilo que os outros, eventualmente, possam pensar de mim.
Olho para a minha família reunida, vem o Manuel e pede-me os braços. O sorriso dele ilumina-me. Vem o outro, o Francisco, e quer sentar-se ao meu colo. Tenho por hábito apertá-los e beijá-los muito, o que não é, propriamente, um modo de estar que os alegre. "Já chega!", diz o Francisco e corre para o corredor, o irmão atrás. Os adultos conversam uns com os outros, sobre futebol. Olho para a fieira de fotografias expostas no rebordo das estantes. Quando casei com a Isaura, éramos dois miúdos; quando estava na meia-idade, e desempregado; e, agora, esta, de há meses, oito pessoas numa unidade que me deixa feliz e orgulhoso. Quando éramos novos, e a Isaura caminhava, com os nossos três miúdos, eu ficava inchado de vaidade, como se quisesse dizer: são meus e ela é minha. Tínhamos muito cuidado com protegê-los, eu talvez mais pressuroso: ficara sem mãe com cinco anos, o meu pai trabalhava de noite, no jornal "A Voz", e as ruas constituíam o meu reino. A época era favorável ao descuido e à negligência, e não sei como me consegui safar às ciladas que as ruas armavam a cada instante. Dei-me com gente do piorio que, no entanto, obedecia a regras de honra que me ficaram para sempre. Foi talvez essa aprendizagem rude e desamparada que me ajudou no jornalismo. O jornalismo já não é o mesmo, e acaso é bom que assim seja. Gosto muito de jornalistas, e vêm muitos cá a casa, e ofereço-lhes café e eles saem com outra dimensão da Imprensa e das coisas.
Os meus filhos não tiveram inclinação para os jornais. Seguiram outras pistas e outros caminhos. Não sei se ainda bem, se ainda mal; no íntimo, talvez ficasse feliz. Aqui estão eles, tratam-se uns aos outros por "manos" e, quando toca a reunir, parecem membros de um clã. E, afinal, são-no mesmo.
Vem a hora do bolo e de acender as velas do aniversário. Os meus netos adoram a cena, cantam o "Parabéns a você", o Francisco sopra as velas duas e três vezes, os dois batem palmas, acompanhando os adultos. Digo à Isaura: hoje estou menos cansado do que é costume. Ouve-se o silvo de um carro de bombeiros. Sou um homem feliz.”Baptista-Bastos em Crónica publicada no Jornal de Negócios,04.07.2014
O Miguel completou 43 anos, escolheu a profissão que quis; o Pedro faz 45, no dia 14 de Julho, o da Tomada da Bastilha; e o Filipe, em 18 de Outubro, entra nos 39. Os meus netos, Francisco e Manuel, têm nomes de imperadores, e são a luz dos meus olhos. Disse, mais ou menos o que digo agora, em 6 de Fevereiro, lançamento do meu livro, "Tempo de Combate", e faço estas públicas confissões (se se considera confissões a narrativa de um homem comum), porque, como repete a Isaura, nunca desisti, mesmo quando as circunstâncias pareciam um convite à demissão. Não desisti, e não desisto, podem estar tranquilos.
Não desisti é, pois, uma norma de vida que sigo sem presunção nem soberba. Já me armadilharam algumas vezes, não muitas, mas as suficientes para deitar um homem abaixo. Contudo, não sou o único nesta esquadria. Foi o exemplo de muitos mais homens que me ajudou a não capitular. Vejo, agora, da janela, o meu vizinho que teve uma trombose, caminha com dificuldade, apoiado numa bengala, mas também não desiste. Há dias perguntei-lhe se não sentia um certo constrangimento com as manifestações, mesmo discretas, que, no bairro lhe faziam, quando caminhava levemente de lado. "Quero que eles se lixem!", vozeirou, e foi à vida. O desapego ao que os outros possam pensar é, também, uma forma de superioridade moral. Eu penso de maneira diferente: não gosto daquilo que os outros, eventualmente, possam pensar de mim.
Olho para a minha família reunida, vem o Manuel e pede-me os braços. O sorriso dele ilumina-me. Vem o outro, o Francisco, e quer sentar-se ao meu colo. Tenho por hábito apertá-los e beijá-los muito, o que não é, propriamente, um modo de estar que os alegre. "Já chega!", diz o Francisco e corre para o corredor, o irmão atrás. Os adultos conversam uns com os outros, sobre futebol. Olho para a fieira de fotografias expostas no rebordo das estantes. Quando casei com a Isaura, éramos dois miúdos; quando estava na meia-idade, e desempregado; e, agora, esta, de há meses, oito pessoas numa unidade que me deixa feliz e orgulhoso. Quando éramos novos, e a Isaura caminhava, com os nossos três miúdos, eu ficava inchado de vaidade, como se quisesse dizer: são meus e ela é minha. Tínhamos muito cuidado com protegê-los, eu talvez mais pressuroso: ficara sem mãe com cinco anos, o meu pai trabalhava de noite, no jornal "A Voz", e as ruas constituíam o meu reino. A época era favorável ao descuido e à negligência, e não sei como me consegui safar às ciladas que as ruas armavam a cada instante. Dei-me com gente do piorio que, no entanto, obedecia a regras de honra que me ficaram para sempre. Foi talvez essa aprendizagem rude e desamparada que me ajudou no jornalismo. O jornalismo já não é o mesmo, e acaso é bom que assim seja. Gosto muito de jornalistas, e vêm muitos cá a casa, e ofereço-lhes café e eles saem com outra dimensão da Imprensa e das coisas.
Os meus filhos não tiveram inclinação para os jornais. Seguiram outras pistas e outros caminhos. Não sei se ainda bem, se ainda mal; no íntimo, talvez ficasse feliz. Aqui estão eles, tratam-se uns aos outros por "manos" e, quando toca a reunir, parecem membros de um clã. E, afinal, são-no mesmo.
Vem a hora do bolo e de acender as velas do aniversário. Os meus netos adoram a cena, cantam o "Parabéns a você", o Francisco sopra as velas duas e três vezes, os dois batem palmas, acompanhando os adultos. Digo à Isaura: hoje estou menos cansado do que é costume. Ouve-se o silvo de um carro de bombeiros. Sou um homem feliz.”Baptista-Bastos em Crónica publicada no Jornal de Negócios,04.07.2014
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