A coragem e
a esperança
Por
Baptista-Bastos
“Quando
o ministro Nuno Crato afirma, impante e sem pudor, que o fecho de escolas
destina-se a melhorar a qualidade do ensino, penso o que o poder pode fazer a
um homem, na aparência sério e honrado.
Sou
produto da escola pública e republicana, e a educação que me ministraram foi
marcada por valores e princípios que parecem, hoje, soterrados. Da primária
ainda tenho, pelo menos, dois amigos da minha idade. Da António Arroyo, uns
mais, e vamos sabendo uns dos outros, com a atenção própria de quem acalenta
alguma coisa sentimental que ficou dos alvoroços da juventude. Possuo e
alimento memórias de professores inesquecíveis: a dona Odete, bela como um
milagre perfeito; de Emílio Menezes, goês, gramático distinto, que nunca
desistiu de descriptar, para os alunos, os mistérios aparentes de "Os
Lusíadas." O que eu e muitos mais devemos a esses professores abnegados é
impagável porque é para toda a vida.
E não é apenas (o que seria incomensurável) o ensino das coisas dos livros. Foi
um modo de vida, uma constância de comportamento, digamos assim: uma moral em
acção. E andei em muitas escolas, consequência da vida agitada do meu pai. E
foi bom porque conheci gente cujo carácter moldou o meu. Para sempre.
Eis porque fico desolado, revoltado e irado quando encerram uma escola. O que
tem sido comum, desde que estes senhoritos, seguindo o tenebroso projecto de
David Justino, acabam com essas instituições, demonstrando uma frieza que roça
a crueldade. Há miúdos, os nossos miúdos, que, para adquirir alguns básicos
conhecimentos, têm de percorrer 50 ou mais quilómetros, em condições não só
deploráveis como repulsivas numa sociedade actual. O plano de destruição da
escola pública prossegue, justificando o Governo, com o número de alunos, essa
decisão.
O encerramento de escolas, de tribunais, de serviços de finanças, de centros de
saúde, de correios, faz parte de uma ideologia que o dr. Cavaco, por exemplo,
considera justa e rodar no caminho certo. Uma ideologia que destrói a coesão
nacional, que desertifica o interior do país, que representa um crime de
lesa-pátria a que as consciências livres não podem permitir que fique impune. A
política governamental não é somente o empobrecimento económico dos mais
fracos, corresponde ao enfraquecimento social e a uma disposição que apoia e
promove uma elite com dinheiro e com poder.
Quando o ministro Nuno Crato afirma, impante e sem pudor, que o fecho de
escolas destina-se a melhorar a qualidade do ensino, penso o que o poder pode
fazer a um homem, na aparência sério e honrado. Há muito tempo já, atirei para
o caixote dos embustes o livro "O Eduquês", que fora o regalo de
muita gente de recta consciência, habituada a ver e a escutar, na televisão, um
preopinante, caucionado pela qualidade do que dizia e pela circunstância de ter
a seu lado um intelectual íntegro como o prof. Medina Carreira. Mas a vida é
como é, e os impostores não nascem, apenas, das circunstâncias, já o são mesmo
antes de se revelar.
As pessoas de bem não podem calar-se ou cumpliciar-se com a indiferença ante
comportamentos desta natureza. Bem sei, até por experiência própria, que a
época não é propícia à rectidão moral nem à coerência ideológica, mas, como
cantou Manuel Alegre, "Mesmo na noite mais triste / em tempo de servidão /
há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não."
Nem todas as pessoas são iguais, nem todos os princípios estão soterrados, nem
todos os valores foram decapitados, embora a mentira venha de quem a não
deveria propalar e pareça caminhar sem castigo nem desafronta. Alguma
bruxuleante luz observa-se, já, no horizonte das nossas amarguradas vidas. O
castigo a quem tem prevaricado com insistência está a chegar. Tenhamos
esperança e coragem.” Baptista-Bastos, em artigo de opinião publicado no JN de 27/06/2014.
Sem comentários:
Enviar um comentário