"(...)Um brilhante cientista disse-nos, numa conversa informal: " no fim de contas , o que é que toda a vossa ética e a vossa bioética mudaram no mundo? Nada; não mudaram nada. " O laconismo desta reflexão não se queria agressivo na mente do seu autor, mas provinha de uma constatação crítica que tentava ser meramente objectiva. O que responder perante semelhante interpelação?
Julgo que se deveria responder a partir da filosofia: o que significa " mudar qualquer coisa" no nosso mundo? Ao que parece, os progressos tecnológicos mudaram e continuam a mudar mil e uma coisas no nosso dia-a-dia; mas será que mudam mesmo qualquer coisa na nossa maneira de nos relacionarmos com a existência , com o seu sentido e com a presença dos outros seres humanos à nossa volta?
O ensino da ética leva-nos a afirmar que nem tudo aquilo que é tecnicamente possível é eticamente desejável. A esta primeira verdade da ética e da bioética o Professor Luís Archer acrescentava imediatamente que, de facto - e talvez infelizmente -, tudo aquilo que é tecnicamente possível acabará por ser realizado um dia. Entre essas duas afirmações abre-se o espaço da ética, isto é, o espaço entre a vontade humana e aquilo de que ela não apenas é capaz, mas que efectivamente vai realizar pela força do seu agir. Esta relação não obedece a um determinismo cego; qualquer que seja a nossa compreensão de todos os factores - externos e sociais , ou internos e neuronais - que intervêm como condições do nosso agir, não se pode nem se poderá eliminar o momento da tomada de decisão individual, que se cruza com a decisão dos outros.
A marcha da nossa própria história, assim como a da história colectiva, muda insensivelmente, mas também às vezes brutalmente, o curso daquilo a que chamamos globalmente o " mundo". Quem estudou, como Hannah Arendt, a história dos totalitarismos no século xx reconhece-o necessariamente. Somos ainda hoje marcados pelo fantasma das consequências dramáticas que nos assolaram e que provinham no fim de contas de decisões que não obedeciam a um determinismo inevitável. Neste sentido, tal como Paul Ricoeur afirmou, o passado não está tão fechado, tão passado como poderíamos pensar, nem o futuro tão aberto e indeterminado como se podia acreditar. Noutros termos, o carácter aleatório do futuro já está moldado pela orientação das nossas decisões passadas e presentes.
Contudo, há algo de imprevisível na vida do mundo; é o que podemos designar como a figura resultante das nossas decisões e acções. Ora, contrariamente à situação da política, os valores éticos, por si próprios, não se impõem; propõem-se e, deste modo, são sujeitos à livre aceitação por parte dos seres humanos que nos rodeiam. Uma cacofonia ética e social pode resultar - e resulta muitas vezes - desta convivência de éticas diferentes que regulam as tomadas de decisão; esta situação é susceptível de nos confundir, como se finalmente todos os valores éticos que constituem a " vida boa" fossem marcados por um relativismo insuperável. Assim, a " vida boa" parece diluir-se numa explosão não dominada por ninguém. Mas, ao mesmo tempo, um breve olhar retrospectivo mostra-nos que, do ponto de vista da "vida boa", todas as sociedades conheceram progressos e recuos. Por exemplo, é quase espontâneo que o grito " injusto" seja proferido perante determinadas situações. Isso prova que o sentido ético está tão radicalmente enraizado em nós que permanecerá sempre a exigência de uma reflexão sobre aquilo que pode e deve ser feito.
Noutros termos, sob o impacto das nossas decisões, éticas antes de serem políticas, o mundo mudou e continua a mudar. Dizer que a ética e a bioética não mudaram nada é o melhor meio de entregar o futuro do nosso mundo à deriva de forças incontroladas que se substituem à busca de "sentido". É verdade que o progresso dos valores éticos e morais nunca está assegurado, contrariamente à evolução tecnológica. Porém o sentido último das mudanças devidas à tecnociência não se encontra nelas, mas na compreensão de si mesmo que o ser humano adquire graças a elas. Quanto à ética e à bioética, a primeira decisão que devemos tomar consiste em repudiar a tentação fácil e a ideia errada da sua inutilidade. No fim de contas é por isso que estamos todos reunidos aqui." Michel Renaud, Filósofo, Discurso de abertura da Conferência do CNECV " Demografia, Natalidade e Políticas Públicas", 2013
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