Bandeiras e máscaras
Manoel de Andrade
Esse é o tempo cruel que antecede o
amanhecer.
Em seu rastro marcham os filhos das
estrelas e os herdeiros da penumbra.
Na moldura das horas as intenções se
partem.
Ali, os justos ensaiam seus passos.
Acolá, nos becos, os ânimos crepitam
e engatilham seus gestos.
Nas ruas as faces empunham bandeiras,
as máscaras escondem punhais.
Passo a passo, portando consignas e
estandartes, a multidão caminha...
ocupam estradas, bloqueiam rodovias,
paralisam cidades,
avançam no seio da tarde denunciando os
charcos do poder e os leilões da mais-valia.
É o nosso “Dia de Lutas”, gritam os
sindicalizados.
São cinquenta, são cem mil pedindo tarifas
justas,
terras repartidas, quarenta horas semanais...
Faixas, cartazes, coros e gritos:
“Prisão para os corruptos”, “Punição para
os crimes da ditadura”.
“O
povo acordou, o povo decidiu, ou para a roubalheira, ou paramos o Brasil”.
Eis o espaço do povo,
eis as ruas virtuais,
é a nova democracia,
pelas redes sociais.
Salve moças e rapazes,
salve as faces descobertas,
salve as bandeiras e os sonhos,
erguidos com transparência.
De repente as fronteiras são rompidas,
sobre as cores da paisagem as máscaras
armam seus braços,
quais abutres insaciáveis atacam os
cristais e escarram na decência.
Atrás dos grandes escudos os uniformes
avançam.
Voam coquetéis e pedras, explodem gazes,
morteiros,
soam tiros e foguetes entre o fogo e as barricadas.
Salve os agentes da ordem, salve os bons pretorianos.
O verde-oliva e o negro já cruzam suas
espadas,
barras, paus e cassetetes
e as razões abaladas.
Chegou a tropa de choque nos trajes da
truculência.
Surge o gesto inconfessável,
surge a fraude na vergonha e o flagrante forjado.
Asco aos falcões do cinismo algemando a
inocência.
Eis o palco dos tumultos,
eis as cinzas da batalha,
eis o saldo do espanto
e a multidão dispersada.
Restou o ato incompleto,
sem o hino dos professores,
e sem o eco das promessas
na voz dos governadores.
Massacraram a primavera
e a magia da cidade.
Assustaram os pardais,
retalharam a liberdade.
Eis a cultura que herdamos
a esfolar nossas almas.
Abatido por tantos golpes,
o amor é um silêncio
e as avenidas soluçam,
qual um salgueiro de lágrimas.
E agora, eis-me aqui, diante da poesia,
assistindo desabar as velhas torres do
encanto...
Perplexo, que posso ainda?
sou apenas um olhar melancólico diante da
esperança.
Indignado ante a mística do horror,
quero transformar em versos os protestos, o confronto, as cicatrizes.
A realidade é um idioma intraduzível,
e eu impotente, ante o mistério sinuoso das
palavras.
As palavras, oh! as palavras em sua
essência,
elas não se revelam a qualquer poeta...
habitam em seu próprio enigma,
são silentes como os hinos do entardecer...
Nesse impasse, entre as imagens e o
lirismo,
ante a sensibilidade e a violência,
sei de um roseiral em flor no caminho dos
meus passos,
alhures há um campo de espigas que cantam, balançando
ao vento
e, nesta palmeira esbelta, a vida é
reproclamada nos trinos de um ninho em festa.
Curitiba, Outubro de 2.013
Manoel de Andrade, poeta brasileiro
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