desfaçam-nas:
uma palavra desfeita não magoa,
uma palavra inteira rasga a boca,
uma palavra inteira é a certeza
de outra palavra inteira, a corda fina
que vai da trave à terra, do caibro ao vento
de uma janela aberta:
a imprecisa
minúcia da poeira
(...)
A mão do cego distingue a sombra de
uma palavra,
mas não a boca que fala.
A mão do cego lê na proximidade da pedra.
Ou de outra mão.
A mão do cego não acolhe, pressente.
Sinuosa irrespirável solidão.
Rui Nunes, in ”Uma Viagem no Outono”, Relógio
d'Água, Junho 2013
“O massacre concentrou-se em pequenas
coisas. E sobrevive, nas cansadas viagens suburbanas. Sob os olhos colados de
sono, a mão esquecida pesa ou afasta, às vezes cai, abandonada. Um cão
enrola-se debaixo de um banco: as palavras têm aqui a aspereza de um vidro
riscado. Estação a estação fica mais nítido o vómito nas janelas. E cada minuto
recua até encontrar a sua explicação.
Quem não conhece estas manhãs, duvida:
somos todos o passado clandestino dos
felizes, quando o rio era um brilho entre salgueiros, um desvio incerto da
infância. “
"(...)quando nos sentimos bem na linguagem que produzimos, no próprio discurso
que produzimos, isso só significa para mim que estamos numa gaiola. Pressinto que um dos problemas da
literatura portuguesa é exactamente esse. O talento que muitas vezes encerra a
pessoa na sua própria gaiola."
Rui Nunes, o autor destas afirmações, começou a publicar em 1968. Autor de uma obra extensa, acredita que talvez não continue a escrever, não apenas porque
a progressiva cegueira que o afecta há vários anos já não o deixa, mas também
por sentir que alcançou um momento final."
Neste ano de 2013, deu algumas entrevistas .Apresentamos um fragmento da última entrevista ao JL.
Neste ano de 2013, deu algumas entrevistas .Apresentamos um fragmento da última entrevista ao JL.
Rui Nunes: A imensa palavra
“Dois
livros recentemente publicados, Armadilha e Uma Viagem no Outono, podem ser os
últimos de quase meio século de poesia e ficção. É que os seus olhos vêem cada
vez menos e a literatura já não o move, como adianta ao JL
Qualquer palavra é o prolongamento da
primeira": é o que diz Rui Nunes em Armadilha,
recentemente publicado na Relógio d'Água. E prossegue: "Escrevemos,
gritamos, amamos, destruímos, e tudo são sílabas que se juntam a essa
palavra".
Armadilha, encerra a trilogia iniciada em 2011,
com A mão do oleiro, a que se seguiu Barro, em 2012. Três livros em que o poeta
desvenda "a imensa palavra" da sua vida, no seu registo mais
auto biográfico. Um regresso à "terra matricial" da escrita que não
tem "refúgio" para ele: "O que escrevo é uma dura claridade.
Onde me torno um alvo".
"A palavra, hoje, mutila",
afirma por outro lado em Uma Viagem no
Outono, também com a chancela da Relógio d'Água, publicado quase em
simultâneo. E que afirma ser o último livro que escreve. Estando quase cego, os
seus olhos cada vez conseguem ver menos do mundo que desde sempre se insinua na
sua obra. E foi para aquilo que está "rés ao chão", para onde ninguém
olha: que a sua literatura sempre olhou.
Rui Nunes, 66 anos, que há muito vive
entre Portugal e a Áustria, iniciou o seu percurso poético com As Margens, em 1968. Publicaria depois,
entre poesia e ficção, Sauromaquia, Quem
da Pátria Sai A Si Mesmo Escapa?, Osculatriz, Grito, Grande Prémio de
Romance e Novela da APE, em 1997, Rostos,
O Choro É Um Lugar Incerto, Ouve-se Sempre a Distância Numa Voz, Ofício de
Vésperas ou Os Olhos de Himmler.
De alguma maneira, sente que já "disse tudo o que tinha para dizer",
como afirma. Sabe, porém, como as palavras, de que sempre suspeitou, são armadilhadas,
tal como a memória. E se promete continuar a andar de um lado para o outro para
ver sempre "as pequenas coisas", "abaixo dos joelhos das
pessoas", é possível que ainda vislumbre muito que escrever, enquanto
tiver do mundo um fio de olhar. Por ténue que seja.
JL: Que armadilha é a que desmonta no
seu livro?
Rui Nunes: É a memória. O retorno
contínuo que organiza a perturbação do presente. Essa é a grande armadilha e já
está presente nos dois livros anteriores, embora neste com mais força.
"Hoje fui ao longo do que me
lembrava", diz mesmo num verso.
Fica de resto logo expresso no início
do livro que se vai falar das coisas alteradas pela memória ao longo do tempo.
E vividas não como foram, mas como a memória as revisita.
Como somos apanhados nessa armadilha?
Primeiro, recorda-se de certo modo
para exorcizar. Mas isso nunca se faz realmente. A memória é sempre
acrescentada aos próprios factos. O que desvenda, também encobre. E o processo
acaba por ser infinito. Ou pelo menos, apresenta-se inacabado. É o inacabamento
que leva a continuar a escrever. É o motor da própria escrita.
A escrita tenta desocultar a memória?
Tenta, mas a desocultação é sempre
falhada. Porque só se recorda com as palavras. E elas também encobrem o que
descobrem.
Armadilha encerra uma trilogia, com A mão do Oleiro e Barro, em que parece
haver uma incursão mais autobiográfica. Por que sentiu essa necessidade?
Esses meus livros são de facto os mais
biográficos. Porque tento dar neles a terra matricial da minha escrita, aquilo
que de certo modo a gerou e continua a gerar. É nesse sentido mais fundo que
são autobiográficos.
Há nessa trilogia, uma revisitação da
infância, da figura do pai, do avô... Foi um processo doloroso?
Para mim, sempre foi mais doloroso não
escrever. É evidente que essa presentificação de aspectos, que sendo matriciais
são também dolorosos na minha existência, não foi amável. Mas sê-lo-ia ainda
menos, se não os tivesse escrito. E senti a necessidade de o fazer no fim de um
processo de escrita longo, de algumas dezenas de anos.
Voltando ao início para fechar um
ciclo?
De certo modo. Uma Viagem no Outono, que publiquei praticamente ao mesmo tempo, é
o último livro que escrevo.
Porquê?
Não me habituei às novas tecnologias e
como vejo cada vez menos o que estou a escrever, isso sim é muito doloroso para
mim. Os meus livros vivem muito dos espaços, da própria composição da escrita
na página. Também está muito ligado à minha relação com o mundo, que está
sempre a entrar pela minha escrita. E o meu acesso ao mundo está a ficar mais
ténue. Noutras circunstâncias teria de reorientá-la, mas já não tenho
paciência, nem vontade. Além disso, de alguma maneira já disse tudo o que tinha
a dizer. Se sentir necessidade de dizer mais alguma coisa, escreverei. Mas penso
que isso não irá acontecer.
Pode assim afirmar-se que já se disse
tudo?
Talvez não. Na verdade, nunca se diz
tudo. Mas a minha suspeição em relação às palavras é tão forte que me tem levado
a escrever cada vez menos. Como já disse uma vez, as palavras estão carregadas
de uma certa malignidade, que se torna extremamente difícil de exorcizar. É
isso que me leva à destruição da sintaxe, da narrativa. A sua integridade é
para mim o grande modelo da mentira da própria escrita.
Em que sentido?
Cá estou eu outra vez com o problema
das palavras. Falamos de mentira ou verdade e tudo remete para conceitos muito
fortes, mas não o digo nesse sentido. Sinto simplesmente que não é assim e que
não vale a pena continuar. E cada vez mais.
Não voltou a escrever?
Não, não escrevi mais nada nos últimos
meses.” Maria Leonor
Nunes, JL, 23 de Outubro de 2013
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