Por
Eugénio Lisboa
“Lourenço Marques ficou
sendo, para sempre, a minha capital da memória. O termo deu-mo a Maria de
Lourdes Cortez, que o pilhou, por sua vez, ao Lawrence Durrell.
Era uma cidadezinha
muito bela e ajardinada, onde tudo ficava à mão, para efeitos de convívio,
amizade e amor. Crescia-se ali como no paraíso.
Para os pouco abastados,
como eu, uma parte da vida (a casa) ficava num extremo da 24 de Julho (a
avenida mais comprida lá do burgo), e a outra parte (o liceu) quase no outro
extremo, a desembocar na “rampa” que se atirava por ali abaixo até ao Pavilhão
da Praia. Mesmo, mesmo no extremo, logo a seguir ao liceu, ficava um
caramanchão e a casa do Reis Costa. O Reis Costa, para quem não saiba, era um
personagem: homem cultíssimo, de olhar penetrante e caminheiro infatigável
(nunca teve carro), fora amigo e companheiro de habitação do Hernâni Cidade e
ensinava francês e português como quem trata por tu o Camões, o Anatole, o
Oliveira Martins, o Gide, o Pessoa, o Proust ou o Régio. Esfuracava, com os
olhos imensamente acesos, os nossos mistérios adolescentes e metia-nos nas mãos
a Karenina e as Encruzilhadas de Deus. Amava instantaneamente uns e detestava,
figadalmente e de modo igualmente abrupto, outros. Mas, se lhe pedíamos
clemência para os colegas em desgraça, cedia com gesto magnânimo de imperador
caprichoso mas dialogante.
No liceu, as aulas
cheiravam deliciadamente a amendoim torrado. Tudo quanto ali aprendi ficou
saborosamente contaminado por aquele bom cheiro e por aquele sabor que o mundo
teve quando foi feito. Amendoim, o Júlio Verne, amendoim, o Salgari, amendoim,
o Alexandre Herculano.
Aquele liceu era fora
de série, e acho que nunca paguei publicamente a dívida que fiquei a ter para
com ele. Foi ali que nasci um pouco e foi ali que fiz a minha segunda grande
guerra. Mas já lá vou.
O importante era a
praia. A praia estava ali connosco: mais do que à mão, estava quase dentro de
nós. Junto ao Pavilhão, havia a “rede”, por causa dos tubarões, e uma ponte de
onde se pescava (para fora da rede) e se saltava para dentro do recinto
protegido pela rede. Uma grande parte das pessoas tomava banho dentro da rede,
mais por causa da “prancha” que tinha sido construída dentro daquele recinto,
para “saltos” e “mergulhos”, do que por causa dos tubarões. Porque a malta, a
verdade diga-se, estava-se borrifando para os tubarões. Quantos e quantos dias
não íamos antes para o Palmar, junto ao Peter’s ou à Costa do Sol, perfeitamente esquecidos dos
tubarões que andavam aos cardumes a poucas centenas de metros, junto à Xefina.
Porque não vinham ter connosco? Mistérios que deixo ao ardil dos biologistas.
Para a praia, levava
quase sempre o Nero. Mal chegávamos ao topo da rampa, de onde se avistava a
soberba baía, o Nero, de nervoso, parecia um árabe em transe de manifestação
espontânea: perdia, literalmente, os pedais. Disseram-me que era por ser “cão
de água”. Por mim, acho que o tanas. O que ele era, era laurentino de gema e
pelava-se pela praia como a malta toda que ali tinha nascido.
Isto era nos anos
quarenta e, a partir de certa altura, a praia ficou cheia de soldados do
Infantaria 68 e, um pouco mais tarde, do Infantaria 10: tinham ido para ali “em
missão de soberania”, para guardarem Moçambique dos alemães (ou dos ingleses?).
Destes, dos magalas, lembro-me sobretudo que me faziam uma inveja do caneco
porque alguns se punham a ler, refastelados na areia, como quem esquece, livros
do Camilo, que me apeteciam, mas a que não tinha acesso. Ficou-me, desse tempo,
uma tal fome do Amor de Perdição que, quando me apanhei em Lisboa, na
universidade, atirei-me ao Camilo como gato a bofe. Mal acabava um, saía
desesperado à procura de outro. Quando já não havia nas livrarias de Lisboa,
comprava nas Caldas da Raínha ou onde calhasse. As grandes e intensas leituras
são muitas vezes um puro ajuste de contas com fomes muito antigas: aqui têm uma
teoria novinha em folha, que vos ofereço de borla, para eventual tese de
doutoramento (que vai acabar por estragar a gracinha que tudo isto tem. Mas,
enfim.)
Reparem que estou a
recordar, como o Proust. Sobem-me à crista da memória momentos, imagens, rostos, instantes de
felicidade, que até apetece gritar. As imagens são boas porque não traem a
verdade dos momentos que já foram: ficam intactas, iguaizinhas ao que tinham
sido naquele tempo. “O tempo”, dizia Proust, “que muda as pessoas, não altera a
imagem que delas retivemos”. O quarto onde me rodeava de livros e onde, pela
primeira vez, vi aparecer, ao portão, a Senhora de Rênal, esse quarto está, na
minha memória, intacto, mas a casa onde havia o quarto desapareceu. Qual a
realidade mais forte? A casa que já não existe ou o quarto que, em mim, ainda
existe? A escolha, quanto a mim, é fácil. Matar o quarto era matar a Senhora de
Rênal que em mim não morre, ou só morrerá quando eu morrer.
Sim, lia muito, lia
interminavelmente, à balda, sem ordem nenhuma, ao sabor de um apetite voraz e
querendo começar tudo ao mesmo tempo : mais olhos que barriga. Mais tarde
percebi muito bem o que queria dizer o Salinger, ao afirmar que era
perfeitamente iletrado, mas que tinha lido uma data de livros. Percebi mas não
sei se concordei. Até porque não sei se alguma vez se leu de outra maneira ou
se há outra maneira que dê tanto proveito.
Os grandes momentos de
descoberta estavam sempre ligados – e assim ficaram na minha memória – a certos
momentos ”históricos” ou mesmo históricos (sem aspas). O encontro com a
Charlotte Brontë e com o Stendhal veio “marcado”: a Jane Eyre surgia
ligeiramente estragada pela água, o Vermelho e Negro, em tradução do Marinho,
mostrava-se claramente danificado pelo banho que tomara, em viagem marítima de
Lisboa para Lourenço Marques. Em vez de irem para o refugo, os “rejects”
vinham, pelas mãos do meu pai, parar às minhas. Eu associava romanticamente o
estrago dos livros aos perigos da guerra, mas acho que exagerava. Devia ter só
que ver com o mau tempo e com o mau resguardo da mercadoria no porão. A tais
descuidos, em todo o caso, fiquei eu a dever o início mágico das minhas
leituras e o meu amor vitalício pela Senhora de Rênal. É o que se chama “faire
un bon usage des maladies”. O Pascal, que, nessa altura, ainda não conhecia
(excepto o da Física...) ficaria satisfeito – a sua terapêutica, por uma vez,
funcionara.
O Stendhal
providenciava-me, de um golpe, dois benefícios inestimáveis: o meu amor pela
Senhora de Rênal e a minha incomensurável aprendizagem do horror à pompa asinina e à ênfase
balofa. O seu estilo despojado, acerado e voltaireano (mas cheio de nervo e
emoção) tomou-me de assalto e comigo ficou para o resto da vida. Tem feito, com
frequência, a minha felicidade (como Gide, volto constantemente a ele para
aguçar o bico), e não lhe regateio a minha gratidão. (A Matilde de la Mole, por
algumas semanas, perturbou-me os berlindes: caí na esparrela de achar que valia
a pena esbanjar talento e manha a ver se a “dobrava”. Mas fartei-me e
regressei, para sempre e contente, à Senhora de Rênal. Bem está o que bem
acaba!)
Tudo isto em Lourenço
Marques. E também a guerra. A nossa guerra, a guerra vista dali. Éramos quase
todos pelos aliados, excepto um ou outro nazi que odiávamos meticulosamente e
com intensidade. Líamos o Neptuno e A Guerra Ilustrada que íamos buscar aos
escritórios dos agentes de navegação, muito em especial a Parry Leon &
Hayhoe, onde, quase diariamente, pescávamos vários exemplares da mesma edição,
que eu guardava em caixas de cartão debaixo da cama. Coleccionava Neptunos como
outros coleccionam selos ou botões. Ali aprendi a amar Churchill, a quem fiquei
para sempre fiel, apesar de ele ser conservador e eu não. A verdade é que
nenhum cidadão que se preze poderá jamais trair os bons tempos do Neptuno.
Ganhámos a guerra juntos e essas coisas, parecendo que não, ficam. Fiz a Guerra
do Deserto no Scala, às matinées, e estive em Casablanca com a Ingrid e o
Bogey, muito antes de os lisboetas poderem estar (há censuras e censuras e, em
Lourenço Marques a liberdade era maior...). E, à fisgada, com os meus irmãos,
rebentei a vitrine de uma loja de fotografia que pertencia a um tal Bonk,
alemão, igualzinho ao Himler. Que era espião, era. E por isso pagou. Eis como
ajudei os aliados a ganharem a segunda guerra mundial.
Os submarinos alemães
torpedeavam navios aliados à entrada da baía, e os náufragos vinham para
Lourenço Marques e, alguns, para a África do Sul; os submarinos aliados, por
sua vez, torpedeavam barcos alemães e italianos, e os náufragos vinham também
para Lourenço Marques. A malta, em vista disto, ia para a praia ou para o topo
da rampa para cocar os longes da baía, para os lados da Inhaca. Fazíamos tanta
força para ver, que acabávamos por ver os submarinos que, naquele momento, não
estavam lá ou, estando, não se viam. Quando, muitos anos depois, vi miudos a
fazerem o mesmo num filme do Woody Allen, achei que era plágio. Quem tinha
visto primeiro os submarinos que não estavam lá tínhamos sido nós, na Lourenço
Marques, que naquela altura estava lá e agora já só está dentro de mim. O Woody
que se vá lixar.
A guerra, ou antes, o
fim dela, trouxe-me outras coisas. Quando a Alemanha se rendeu
incondicionalmente (como esta palavra brilhava com toda a sua força
vingativa!), como o feriado não veio de seguida (o governador aguardava ordens
de Lisboa), entrámos em greve, no liceu
(a ordem de feriado veio logo a seguir). O dia de greve mais o feriado
“oficial” fez dois dias, o que deu para uma data de cavaco. Foi nessa altura
que, reunido subversivamente, em minha casa, com um colega, falámos de coisas
deliciosamente proibidas: os movimentos democráticos em Portugal, o assassinato
do Lorca e um sujeito francês que se chamava Sartre e era escritor e filósofo.
Tudo aquilo em voz baixa, de catacumba, para “eles” não ouvirem. O Lorca ficou
comigo e mais tarde, já em Lisboa,
li-lhe as peças e vi a Bernarda Alba, com a Maria Barroso a fazer de Adela, a
mesma Maria Barroso que encarnou a Benilde do Régio. Devo confessar que, ao ver
a Maria Barroso na Benilde, a Senhora de Rênal esteve quase a correr o risco de
ser substituída. Mas não tive coragem: essas coisas não se fazem e, ao fim e ao
cabo, ela estava disposta a morrer por mim, beijando os filhos. São coisas que
marcam.
O Sartre captou-me com
alguns contos, um romance e algum teatro. Mas o filósofo é de se ir ali e já
vir. Que trapalhada! O Bertie Russell é que tinha razão em dizer, apesar de ser
amigo e, em certa fase, correligionário político dele: “Tudo aquilo não passa
de extravagâncias linguísticas”. Bem sei que o Vergílio Ferreira chamava ao
Sartre a “locomotiva de pensar”. Mas o Vergílio sempre teve aquele feitio e
sempre confundiu pensar com uma certa forma oracular de ejacular palavras.
Ponho-me a falar e não
sei que fio leva a história. Isto de começar com a Maria de Lourdes Cortez e
acabar com o Vergílio Ferreira não augura nada de bom. E o pior é que esta
crónica já vai comprida. E pouco ou nada pesquei do tempo perdido. Perdido?
Enfim, fica para outra vez, se me der para aí." Eugénio Lisboa, em Crónica
publicada na revista LER
Uma narrativa com vida, palpável, sentida, para quem cresceu precisamente neste tempo e neste lugar, Lourenço Marques anos 50 e 60.
ResponderEliminarEstamos em idade de recordar o que era e como foi.